Título: Mal de Chagas: ciclo vergonhoso para o Brasil
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Fonte: Correio Braziliense, 07/02/2012, Opinião, p. 14

Motivo de orgulho do país em 2006, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) premiou seis décadas de ação sanitária contínua com atestado de que o Brasil interrompera a transmissão da doença de Chagas por seu principal vetor, o barbeiro Triatoma infestans, o certificado internacional é hoje um marco da desmobilização da ação do Estado em relação a esse mal.

Antes da competência da União, a borrifação de veneno para matar o inseto passou a ser responsabilidade dos estados e municípios, mas governadores e prefeitos reclamam que os recursos federais não chegam. O medicamento para casos agudos e crônicos, que a indústria farmacêutica já deixara de produzir, por não ser lucrativo, ficou exclusivamente a cargo do Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe), que chegou a passar sete meses sem fabricá-lo.

Resultado: 5 mil mortes são registradas anualmente, mas a estimativa é que o número real esteja entre 10 mil e 21 mil. Cerca de 11% dos municípios brasileiros (606), distribuídos por 13 estados, estão classificados como de alto risco. Outros 26,9% (1.497) são de médio risco e 22,2% (1.235), de baixo. O número de doentes crônicos é de pelo menos 3 milhões (1,5% da população do país), 75% dos quais relatam jamais terem sido orientados por um profissional da saúde. A situação chegou às raias do surrealismo — a ponto de, a 320km do Palácio do Planalto, 2 mil dos 31,4 mil habitantes de um município de Goiás somente saberem que têm a doença graças a pesquisadores do Texas (EUA) que, há 10 anos, aparecem por lá a cada semestre, com financiamento 100% norte-americano. Pior: o exame positivo obtido em terra estrangeira não melhora a vida desses brasileiros.

Em vez de honrar o certificado da OMS, o Brasil o desmerece, com o relaxamento dos controles. O abandono é fartamente ilustrado pelo Correio desde domingo. A série de reportagens revela que o Triatoma infestans perdeu a vez para outras quatro espécies de barbeiros, mas a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) não descarta o ressurgimento do principal vetor. As matérias mostram que a falta de uma política de Estado para o combate ao mal de Chagas (o nome vem do cientista brasileiro Carlos Chagas, que o descobriu mais de um século atrás) já prejudica inclusive outros países. Em outubro, relatório da 27ª Reunião de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas indicou que, só na América Latina, 12 nações estavam à espera do benznidazol, remédio produzido pelo Lafepe, único que ataca o protozoário Tripanossoma cruzi.

É chegada a hora de identificar e cobrar responsabilidades, mas sobretudo de implementar uma política nacional sistêmica contra esse mal, assegurando a prevenção e a assistência e o tratamento dos doentes. A descentralização do Sistema Único de Saúde não pode servir de desculpa para a desídia. Urge agir, inclusive, porque a enfermidade já ronda a periferia de regiões metropolitanas, podendo atingir a dimensão de epidemia urbana. Além do grave problema de saúde, a doença, associada à pobreza, tem importante fator social e econômico, por acarretar limitações graves à vida dos infectados, não raro levando ao afastamento do trabalho e até mesmo à aposentadoria precoce.