Mudança climática já ameaça cidades litorâneas do país, aponta estudo

Daniela Chiaretti

03/06/2017

 

 

O presidente americano Donald Trump escolheu agradar o conservador eleitorado que o elegeu ao anunciar a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris com um discurso populista. Jogou os números que bem entendeu para convencer o seu público de que seguir apostando na economia dos combustíveis fósseis trará empregos e será um bom negócio para os EUA. É uma aposta no passado.

Ao dizer que foi eleito pelos cidadãos de Pittsburgh - a segunda maior cidade da Pensilvânia conhecida por ter sido o pólo produtor de aço - "e não pelos cidadãos de Paris", Trump sinalizou que a maior economia do planeta e o segundo maior emissor de gases-estufa seguirá a trilha do carvão, e não a das energias renováveis e da inovação tecnológica que vêm a reboque do debate aberto pelo Acordo de Paris. Seu desenho da "América" é o de um lugar decadente e que cheira a naftalina.

A decisão de Trump, anunciada ontem à tarde nos jardins da Casa Branca, era ao mesmo tempo temida e esperada. Ele não escutou mais de mil empresários americanos que pediram que os EUA continuassem no acordo, entre eles companhias de ponta como a Tesla e até empresas de petróleo como a Exxon. Também não deu ouvidos a um grupo de militares que, há um mês, tentou alertá-lo que o combate à mudança do clima é assunto de segurança nacional. E não deu a mínima para os demais líderes do G-7, que tentaram convencê-lo a ficar no acordo durante a cúpula da semana passada, na Itália.

Ao dar as costas ao multilateralismo e ao regime climático, entre outros tópicos urgentes da agenda da cooperação internacional, Trump irritou até a pragmática premiê alemã, Angela Merkel. No domingo, num evento numa cervejaria na Baviera, ela surpreendeu ao dizer que está na hora de a Europa "colocar seu destino em suas próprias mãos".

É difícil acreditar que o mundo poluído defendido por Trump possa trazer algum benefício aos Estados Unidos. Os números da Irena, a agência mundial de energia renovável, espécie de irmã "verde" da Agência Internacional de Energia, indicam que quase 10 milhões de pessoas estavam empregadas no setor de renováveis no mundo em 2016. A estimativa é que sejam 24 milhões em 2030. Em função dos maciços investimentos chineses, 62% do total de empregos nesse setor no mundo estão hoje na Ásia.

A teimosia fanfarrona de Trump de puxar os EUA para o outro lado da tendência mundial foi questionada pelo governador da Califórnia o democrata Jerry Brown. "Donald Trump escolheu o caminho errado. Errado nos fatos, errado na ciência. Não há lugar mais agressivo em mudança do clima do que a Califórnia. Temos metas fortes em eficiência energética e em energias renováveis. Temos um mercado de carbono estabelecido. A Califórnia cresceu mais rápido que o resto do país. Este caminho é bom para os empregos, empregos do futuro", continuou. "Trata-se de um movimento insano deste presidente. A Califórnia irá resistir."

Para o climatologista brasileiro Carlos Nobre, o passo de Trump pode enfraquecer, no curto prazo, a indústria americana. Além disso, pode criar o que Nobre vislumbra como um cenário de "beligerância interna" entre os Estados americanos. "Vai aprofundar a divisão que já existe. Alguns Estados terão uma face cada vez mais energeticamente limpa, enquanto os do Meio- Oeste irão para o século 19".

A consequência imediata de deixar o acordo é que isso irá se "galvanizar uma posição política muito forte contra os EUA", diz Nobre, curiosamente usando a mesma expressão de Andrew Steer, presidente do World Resources Institute, o famoso think-tank de em Washington. Para Steer, a decisão de Trump é um "erro colossal."

Os olhos de todos estão voltados agora para a reação dos "outros", já que os EUA de Trump ficaram isolados na sala. A cúpula de hoje entre China e União Europeia terminará com a formalização de uma aliança verde entre Pequim e Bruxelas. Na bandeja estão desde a cooperação no uso de carros elétricos, o estímulo às energias renováveis e a criação de padrões conjuntos de eficiência energética. Isso pode significar no futuro que as empresas americanas terão de se adequar a tais standards, ou não poderão exportar para os mercados europeu e chinês.

Outro ponto é o apoio da Europa, que desenvolveu o maior e mais sólido mercado de carbono do mundo, de repetir a experiência na China. Embora o preço do carbono esteja hoje depreciado, o Acordo de Paris prevê o ressurgimento deste mercado, agora em perspectiva global. "A China não vai perder a oportunidade que os EUA estão dando de graça, de liderar uma agenda tecnológica e ser o grande produtor verde do mundo", diz Nobre. O que pode acontecer é a economia americana perder força junto com a perda de credibilidade dos EUA.

Com o desembarque americano há quem enxergue o surgimento de uma nova coalizão de forças na economia do clima. É o que diz Jennifer Morgan, diretora-executiva do Greenpeace mundial e uma das articuladoras do Acordo de Paris. Nessa nova frente, diz, "haveria países, governos locais e empresas emergindo, para preencher o espaço deixado pelos EUA".

Na contabilidade das emissões, o desastre pode não ser tão tenebroso como se imagina. Alguns climatologistas estimam que a meta de Obama, de reduzir as emissões americanas entre 26% e 28% até 2025, em comparação ao emitido em 2005, pode estar perto de ser cumprida, mesmo se Trump desmantelar a Lei de Energia Limpa de Obama, privilegiar a mineração de carvão e rasgar os EUA com oleodutos que trarão petróleo de baixa qualidade do Canadá. "A saída do acordo foi mais uma questão política doméstica", diz Paulo Artaxo, outro climatologista brasileiro.

Em arrogante ambiguidade, Trump deixou aberto o desejo de voltar ao Acordo de Paris, desde que a renegociação responda aos interesses americanos. Foi assim mesmo que o maior acordo climático da história foi negociado por Barack Obama, de um lado, e Xi Jinping, do outro. Depois que as duas potências acomodaram os seus interesses em bilaterais, o resto do mundo se adequou. Foi neste berço que o Acordo de Paris foi fechado, em 2015.

A ONU, por meio do secretariado da Convenção do Clima, reagiu prontamente dizendo que o desejo de Trump não pode se realizar já que o Acordo foi assinado por 194 países, ratificado por 143 e que não pode ser reaberto por um único país. Um negociador estrangeiro disse ao ValorPRO que outro acordo do gênero levaria 10 anos para ser costurado, um tempo que o mundo não tem, segundo os cientistas. "Trata-se de um vexame internacional, e quem vai querer negociar considerando as idiossincracias deste senhor?", diz um diplomata, nos termos pouco diplomáticos que Trump desperta.

Martin Wolf, analista econômico do "Financial Times" escreveu que Trump, há só quatro meses no poder, já é um "acontecimento transformador". Explicou: "Trump revolucionou nossas ideias sobre o que os EUA representam. Vivemos em um mundo feito pelos EUA. Agora o país está desfazendo isso. Não podemos ignorar esta cruel realidade." Wolf descreve Trump como um "indisciplinado" que faz um governo "caótico" e está "em guerra permanente com a realidade". O colunista não se referia à postura do burlesco homem mais poderoso do mundo diante da mudança do clima, mas a descrição, infelizmente, também aqui se ajusta à perfeição.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4269, 03/06/2017. Brasil, p. A2.