BNDES errou ao concentrar risco, diz Pio

Heloisa Magalhães e Francisco Góes

03/06/2017

 

 

Presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) por um ano, entre 1998 e 1999, no governo Fernando Henrique Cardoso, José Pio Borges de Castro Filho, um ex-funcionário de carreira do banco, é fervoroso defensor da honestidade da equipe técnica da instituição. Ele deixou o BNDES há muitos anos, mas ainda tem amigos na avenida Chile, no centro do Rio, onde funciona a sede da instituição. Por alguns desses amigos "poria a mão no fogo", diz. Pio é crítico, porém, em relação ao papel recente do banco, ainda na gestão do PT. Embora não conheça os contratos do BNDES com a JBS, que envolveram no total R$ 8,1 bilhões, ele discorda da forma de atuação do banco no período em que as operações com o grupo dos irmãos Batista foram realizadas. Critica, por exemplo, o fato de o BNDES ter concentrado o risco sem ter buscado parcerias no mercado. Para ele, esse excesso de concentração foi motivado a partir do aporte de R$ 500 bilhões do Tesouro ao BNDES, que começou no governo Lula e causou "a maioria das distorções e dos erros de política" do banco. Pio defendeu a gestão de Maria Silvia Bastos Marques, que se demitiu em 26 de maio. "Ela achava que essa dependência de 'cocaína' [de recursos do Tesouro] do banco não podia continuar. E começou a mudar as políticas operacionais", disse.

Pio também elogiou o novo presidente do BNDES, Paulo Rabello de Castro, por ter um pensamento "criativo" e "diferente".

Pio hoje preside o conselho curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), que está envolvido em novos estudos em áreas fundamentais para a retomada da economia, como petróleo e infraestrutura. Independentemente de crise política, ele aposta que há investidores ávidos em participar em projetos no país. Leia a seguir os principais trechos da entrevista ao Valor:

 

Valor: Como o senhor avalia a situação do BNDES hoje, uma vez que o banco tem sido alvo de tantas críticas?

José Pio Borges de Castro Filho: Começaria dizendo que a crítica que Joesley fez [na delação] sobre a severidade da equipe técnica do banco foi o maior elogio que ele poderia fazer a ela. Não tenho a menor dúvida da honestidade da equipe técnica e de alguns que são meus amigos. Eu poria a mão no fogo por eles. Esse é o princípio básico.

 

Valor: Como vê o caso com a JBS?

Pio: O caso JBS é quase uma tragédia, melhor contado por um novelista do que por um economista ou historiador. Porque é típico do empresário obviamente inteligente, embora não o conheça, ele fez movimentos importantes de aquisição que deram certo. Geriu as empresas nos Estados Unidos e não sabia nem falar inglês, com competência, mas se perdeu. Me lembra o episódio da "Odisseia" [épico da Grécia Antiga, de Homero] em que a deusa Atena [da sabedoria] manda Ulysses tapar os ouvidos dos marinheiros e se amarrar no mastro do navio para não ser seduzido pelo canto das sereias. O empresário brasileiro tem que se amarrar ao mastro para não ser seduzido pelo fascínio da proximidade do poder. Ele se perdeu por isso. É o contrário do Jorge Paulo [Lemann], do Marcel [Telles] e Beto Sicupira [sócios da 3G Capital ], que sempre mantiveram uma cerimoniosa distância do poder e por isso prosperaram tanto sem qualquer escândalo.

 

Valor: De onde vêm os problemas do BNDES?

Pio: Quase todos os erros e críticas à política do BNDES advieram do excesso de recursos. Esse aporte de R$ 500 bilhões do Tesouro ao BNDES gerou a maioria das distorções e dos erros de política que eu aponto. Em primeiro lugar, níveis de participação [no investimento] muitos elevados, que aumentaram em determinado período da crise [pós 2008], mas se mantiveram depois. Até porque a meta de premiação dos funcionários era baseada em desembolso, a coisa mais absurda do mundo. Isso levou a um excesso de concentração de risco à medida em que, ao invés de financiar projetos em conjunto com o mercado, o banco quase que expeliu o mercado do financiamento de longo prazo. E concentrou riscos desnecessariamente.

 

Valor: Pode dar exemplos?

Pio: Conheço casos de conselheiros de empresas que foram falar de projetos de investimento e que tinham já operações de mercado, de debêntures, em andamento, e o banco disse: "Não, nós fazemos tudo". Isso é a coisa mais absurda.

 

Valor: Isso foi em que fase, na época de Luciano Coutinho?

Pio: Isso. E essa situação gera concentração de risco exagerada em um projeto como foi o caso da JBS também. E gera uma demanda de recursos absurda, que levou o banco a ficar viciado em "cocaína". Pedir R$ 500 bilhões ao Tesouro é algo inaudito.

 

"Servir de front para o Tesouro é um papel indigno para o banco. Se o Tesouro quer financiar estádio, faça sem o BNDES"

 

Valor: Mas o banco tem um papel contracíclico importante. O problema foi que erraram a mão?

Pio: O banco tem um papel contracíclico. Sempre que havia uma redução de demanda, nós ajustávamos, no passado, e eu fiz isso dezenas de vezes, aumentando o nível de participação [no investimento] de 50% para 65% e depois reduz. E quando reduz, os empresários chiam, os empregados do banco chiam, mas tem que ser feito. Mas há outro problema do excesso de recursos. O banco tomou posições sobretudo em equity [capital], como no caso da JBS, que chegaram a dar resultado. Compraram ações a R$ 8, a ação chegou a R$ 16, e eles não venderam tudo. Se tivessem vendido tudo, não estavam sob crítica agora. Isso porque o BNDES dava lucro e não havia necessidade de reciclar os recursos, porque tinha fonte permanente de recursos do Tesouro em que o banco até ganha dinheiro com isso, porque o BNDES recebe o recurso atrelado à TJLP e bota [aplica] a mercado no CDI. Não tinha pressão de vender as ações nos momentos espetaculares pelos quais passou [a ação].

 

Valor: Mas faz sentido o banco ter feito operações de mais de R$ 8 bilhões com a JBS?

Pio: Não conheço bem o caso da JBS, não conheço a operação em detalhes.

 

Valor: Mas concentrar tanto em uma empresa só se justifica?

Pio: O que caracterizava as operações de mercado de capitais no passado era a parceria com bancos privados. O fato de ser uma operação de debêntures ou ações era o detalhe, era uma forma de fazer. Mas [na gestão de Coutinho] muitas das operações de mercado de capitais o banco fez sozinho. E assim fica sujeito a dois problemas: um é a concentração e outro é que fica sujeito à crítica nas condições de negociação. Será que o preço de conversão estava correto? Será que o preço da ação foi bem feito [avaliado]? Mas se você compra 30% e o mercado, 70%, está imune à crítica. E se você recicla [a carteira] e vende essas ações com lucro, pronto, acabou, foi uma operação de sucesso. Mas se as ações sobem, mostram resultado e não vende, amanhã cai e você está sujeito a críticas.

 

Valor: Até que ponto pode ter havido influência externa sobre o banco para que determinadas operações fossem aprovadas?

Pio: Não acredito. Eu estou desligado do banco, não boto os pés lá há anos. Mas não acredito porque conheço algumas das pessoas envolvidas. Agora acho que o banco se expôs por não seguir regras do passado que era operar com o mercado e reciclar os recursos logo que possível porque aí não tem mais possibilidade de crítica. Por esse modelo, o banco entra com o mercado nas mesmas condições dos bancos privados, os fundos de ação, e sai com resultado. Mas quero voltar ao problema de excesso de recursos. Outro problema que isso gerou no banco são as operações em nome do Tesouro. O BNDES servir de "front" para o Tesouro é um papel indigno para o banco. Se o Tesouro quer financiar estádio de futebol inviável, que não o faça via BNDES. Para acabar com isso, eu não faria mais nenhuma operação com aval do Tesouro, porque se precisar desse aval significa que a operação não é boa. Então o excesso de recursos gerou três erros: não operar com o mercado, não vender [as ações] no momento apropriado porque não precisava vender e operações que o Tesouro, como acionista majoritário do banco, mandava fazer. E essas operações podem ser boas, podem ser ruins, mas ele [Tesouro] lava as mãos como se nada tivesse a ver com isso.

 

Valor: Qual é sua avaliação do ano de gestão de Maria Silvia?

Pio: Maria Silvia começou a mudar isso tudo que falei. Devolveu R$ 100 bilhões com muita dificuldade, reação do corpo técnico, porque ela achava que essa dependência de "cocaína" não podia continuar. Ela começou a mudar políticas operacionais. E tenho certeza absoluta que Maria Silvia tem confiança total no corpo técnico do banco.

 

Valor: Ela colocou o banco em um caminho diferente...

Pio: Começou a colocar, mas teve pouco tempo. Miriam [Leitão, colunista de "O Globo"], colocou um ponto importante: 70 dos funcionários do banco só conheceram um presidente [Luciano Coutinho] e 93% dos funcionários do banco não conheceram outro governo que não fosse o PT. Isso porque, em determinado momento, foi feito um Plano de Demissão Voluntária (PDV), pelo qual saíram 400 pessoas. Meses depois contrataram 1,4 mil. Eu quando entrei para o banco, em 1971, quem foram meus professores? Roberto Saturnino Braga [ex-prefeito do Rio], Ingácio Rangel [economista], Eurícles Pereira, Juvenal Osório Gomes [economista], os grandes papas do banco, com quem convivi por 10, 15 anos até assumir cargos de executivo. Esse pessoal que entrou [mais recentemente] não teve esse privilégio de conviver com o pessoal antigo e conhecer melhor as políticas operacionais e saber porque elas existiam.

 

Valor: Como avalia a chegada de Paulo Rabello de Castro ao BNDES?

Pio: Acho ótima. Paulo é muito hábil e tem uma grande qualidade, que é pensar fora da caixa, tem um pensamento criativo. Ainda sobre o excesso de recursos, é preciso mencionar a chamada "bolsa empresário". A TJLP estava dando um subsídio de quase 10% ao ano em relação ao CDI. Que a taxa de juros de longo prazo tenha um valor mais compatível com a viabilidade dos projetos, perfeito. Mas 10% de subsídio com aporte do Tesouro de R$ 500 bilhões são R$ 50 bilhões de auxílio de "bolsa empresário", nem sei quantas vezes é o Bolsa Família. E isso é algo que Maria Silvia e Ilan [Goldfajn, presidente do Banco Central] já estavam trabalhando na mudança do cálculo [da TJLP]. Não é algo novo, mas voltar ao cálculo que o Pérsio [Arida] fez lá atrás, que era uma média ponderada das dívidas do Tesouro.

 

Valor: E aí ela começou a cair.

Pio: Ela começou a forçar [a queda] do subsídio, e é claro que quanto mais subsídio mais concentração. Antigamente era 50% [do investimento]; aí o tomador quer 80%-90% porque quanto maior o empréstimo, maior o subsídio.

 

Valor: Mas a crítica dos funcionários é que a TLP considera que a Selic vai cair de forma constante.

Pio: Mas tem que agir para que as coisas deem certo e como se as coisas fossem dar certo. Se não fosse essa confusão política, havia previsões que a Selic poderia chegar a 6%. Com inflação de 3% ou 4%, é uma taxa normal. Se equacionada a questão fiscal e com a inflação sob controle, a taxa de juros tende a ser uma taxa civilizada.

 

Valor: A crítica dos empregados é até que ponto não mata o BNDES uma taxa de longo prazo mais cara.

Pio: Dez por cento ao ano de subsídio não é razoável, é um custo absurdo para o Tesouro, sobretudo com o orçamento mastodôntico que o BNDES passou a ter.

 

"É uma tragédia. Empresário tem que se amarrar ao mastro para não ser seduzido pelo fascínio da proximidade do poder no Brasil"

 

Valor: Paulo Rabello sinalizou que o BNDES tem que cumprir o papel de banco de desenvolvimento...

Pio: O papel do financiador de longo prazo permanece. Mas não há necessidade de subsídio gigante. É claro que a taxa de juros tem que considerar a viabilidade dos projetos de longo prazo, mas não pode ser abaixo da inflação. E um dos papéis mais importantes do banco no desenvolvimento é desenvolver o mercado de capitais. Mas se há subsídio gigantesco, atrofia o mercado de capitais. Foi o que aconteceu nos últimos anos: o orçamento do banco cresceu de forma extraordinária e o investimento não cresceu.

 

Valor: É possível recuperar a demanda no BNDES?

Pio: Primeiro, falando genericamente sobre a equipe econômica, temos hoje uma equipe igual ou melhor do que qualquer outra que tivemos no passado. Quais são os problemas que temos hoje? O primeiro é o fiscal. É gravíssimo. Como está se enfrentando? Primeiro, com a [reforma da] Previdência. O outro é a taxa de juros. Se a taxa cai para 7%, temos um efeito fiscal de redução de déficit extraordinário. Um terceiro é o subsídio da TJLP que se tornou relevante. Se reduz o volume de desembolso, o volume do subsídio têm um efeito fiscal muito importante. Participei [semana passada] de seminário com o Banco Mundial. Fizeram estudo muito bom. Aponta que a produtividade no Brasil cresceu muito no período da urbanização, do êxodo rural, quando a população passou de 70% rural a 30%. Mais recentemente, [cresceu] com a abertura comercial na época do Collor e, depois, na privatização. De lá para cá a produtividade praticamente estagnou.

 

Valor: Quando o sr. fala em produtividade, refere-se à indústria?

Pio: Não só. Falo em produtividade de mão de obra. Na agricultura melhorou muito, mas na indústria e serviços, parou. Então um dos pontos, além da questão fiscal, é o país ter um choque de produtividade. E se faz isso, a meu ver, com um novo ciclo de abertura. Acho que houve aquele ciclo do começo dos anos 90 e há muito tempo nos ultimos 12,13 anos a economia se fechou. Exemplos estão aí, como o conteúdo nacional da indústria de petróleo, reserva de mercado. O setor de petróleo está tentando se recuperar e veja as reações que se tem, mesmo depois dos erros absurdos de levaram a Petrobras a prejuízos terríveis com a política de conteúdo nacional.

 

Valor: Qual é o modelo de abertura da economia o sr. defende?

Pio: Em termos de retomada, é preciso ver quais os setores que podem recuperar o investimento que está estagnado. O setor de construção civil vai reagir. Com a queda da taxa de juros, tende a retomar. O segundo, é o setor de petróleo. A praticamente quebra da Petrobras gerou uma parada nos investimentos na área de petróleo que se tornaram muito importantes na economia nos últimos dez anos. A meu ver, o Pedro Parente [presidente da estatal] está fazendo um trabalho esplêndido. A Petrobras tende em um a dois anos a retomar os investimentos em um nivel mais normal, embora nunca tenha parado. Acho que agora em setembro-outubro teremos as licitações dos novos campos pelos quais aparentemente há muito interesse dos investidores estrangeiros que até tinham saído do Brasil e estão voltando animados em fazer parceria com a Petrobras.

 

Valor: Qual é o foco do Cebri?

Pio: No Cebri, estamos iniciando um estudo de comparações internacionais na área de energia. O primeiro tema é o conteúdo nacional. Vamos avaliar como foi feito de maneira inteligente em outros países para servir de exemplo para não incorrermos nos erros dos últimos anos. A segunda comparação internacional é o regime de taxação. O Repetro [regime aduaneiro especial para pesquisa e lavra das jazidas de petróleo e de gás natural] está para ser renovado. É fundamental para o setor de petróleo. As comparações dos regimes de taxação internacionais em diversos países, como o Golfo do México, no Mar do Norte, Noruega e Reino Unido, é muito importante para servir de modelo. Não queremos criar jabuticabas. Outro ponto são as comparações na questão ambiental. Queremos comparar com o que é feito aqui. Devemos ter todo o cuidado com meio ambiente, mas não queremos exageros. E finalmente a questão sindical, a trabalhista. Como o setor de petróleo tem normas muito específicas, queremos saber como é tratado no exterior e como é tratado no Brasil e ver as dificuldades que decorrem daí. São os pontos que estamos trabalhando. Tem a questão da abertura, para permitir que novos players entrem e que as exigências de conteúdo local sejam racionais e não levem à ineficiência e a equipamentos que custem duas, três vezes o que custam no exterior, essa é uma condição fundamental para que o setor retome.

 

Valor: Há outra linha de estudo?

Pio: Sim, infraestrutura. A ideia é levantar quem serão os novos players. No passado, eram as empreiteiras, com financiamento de 90% do BNDES. Quem serão os novos players em infraestrutura? A meu ver, já estão aparecendo, a Brookfield, o Pátria, as companhias de investimento, como Vinci e outros que estão se habilitando como os futuros investidores, fundos e companhias de investimento, que poderão substituir a quase exclusividade da empreiteiras no setor de infraestrutura.

 

Valor: Eles vão aceitar o risco?

Pio: O Pátria e a Brookfield entraram nas linhas de transmissão e estão olhando outras coisas. É claro que é necessário tambem que as regras do investimento tenham certo grau de abertura, eliminem reservas de mercado, permitam fornecedores internacionais para baixar custos, para que os investimentos sejam viáveis e não dependam de futuros subsídios.

 

Valor: Haverá apoio do BNDES?

Pio: Sempre, mas não exclusivamente. E não com taxas de retorno irrealistas, muito baixas. Também há outros financiadores. Já estão também colocados os bancos chineses. O Bank of Communications comprou parte do BBM e está interessadíssimo em ser um dos grandes financiadores de infraestrutura. Acho que o modelo de financiamento vai e tem que mudar.

 

Valor: O ambiente político inibe?

Pio: Tudo isso é muito confuso. Temos uma boa equipe que está tendendo a fazer as coisas certas. Agora, se o Temer fica ou não fica, quem vai ser eleito indiretamente, a situação em 2018, a gente não sabe. Mas as pessoas de boa-fé têm que trabalhar como se o Brasil fosse continuar.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4269, 03/06/2017. Especial, p. A12.