É hora da ética consequencialista

Antonio Delfim Netto

06/06/2017

 

 

Uma crise que se respeita não admite saída ótima! Na melhor das hipóteses, todas as soluções serão ruins. Talvez exista uma "menos pior" no curto prazo e que atenda, também, às exigências da solução no longo. A suprema necessidade de corrigirmos o imenso desequilíbrio fiscal em que nos afundamos e a criação de uma consciência social de que sem reformas estruturais será impossível voltar ao crescimento robusto e inclusivo, parece ter ganhado terreno desde a posse do presidente Temer, há um ano.

A sangrenta oposição a elas vem do poderoso corporativismo que praguejou o alto estamento do funcionalismo público federal dos três Poderes e do Ministério Público. Na confusão da Constituição de 1988, e graças ao laxismo de todos os governos posteriores, ele acumulou uma carga insuportável de direitos "mal" adquiridos. O poder no Brasil de hoje está claramente concentrado nas mãos dessa "elite rentista" que vive da extração dos frutos produzidos pelo até agora distraído trabalhador privado. Isso se prova sem delação premiada: o valor da aposentadoria média dos primeiros é 12 vezes maior que a dos segundos! É preciso gritar alto: o corporativismo rentista recebe, em média, por mês, o que o descuidado trabalhador do setor privado recebe por ano! Mas isso é "em média"! Como a variância salarial é muito grande, ouso dizer que no "topo" do corporativismo há alguns que recebem por mês, o que o trabalhador do setor privado receberá em 36 meses.

No ano entre maio de 2016 e maio de 2017, a luta foi dura. É inegável, entretanto, que as medidas propostas por Temer vêm sendo aprovadas pelo Congresso e que os primeiros e tênues sinais da melhora da "conjuntura" começam a aparecer. Infelizmente, um chefe de quadrilha, numa operação bem montada para ouvir o presidente, fez uma delação realmente "premiada". Lançou uma confusão geral e escafedeu-se! Deslocou-se gloriosamente, com armas e bagagens, para onde tem, hoje, a maior parte do patrimônio que furtou da sociedade brasileira. Por que não?

O quadro é triste, opaco e embaraçoso. Temos que insistir na presunção da inocência e admitir a defesa mais ampla e plena, mas não podemos ignorar que o mal está feito. E que não pode ser desfeito! A crescente indignação da sociedade com a desfaçatez do "chefe da quadrilha" e as circunstâncias dramáticas em que se deu a armação bem sucedida, exigem o avanço das investigações, para que cada um esclareça, se puder, o que fez.

Antes de prosseguir, uma advertência: a questão nada tem a ver com a operação Lava-Jato, como sugerem pescadores de águas turvas. Ela já é um ponto de inflexão na história do Brasil! Goste-se ou não, é hoje, de fato, a única unanimidade nacional. Se no curto prazo produziu alguns inconvenientes é preciso reconhecer que, no longo prazo, será provavelmente a melhor coisa que poderia ter nos acontecido. Expôs as entranhas do "capitalismo de compadres" promovido pelo poder Executivo que, este sim, atrasou o desenvolvimento do país. Mostrou, afinal, como se pôs em risco os próprios fundamentos da ordem democrática quando os quadrilheiros capturaram, também, o poder Legislativo. Institucionalizada, a Lava-Jato será o "novo normal" quando se esgotarem seus atuais clientes pela mudança de comportamento que imprimiu à responsabilidade empresarial e aos agentes públicos. É por isso que é preciso brindá-las e recomendar-lhe a mais absoluta objetividade acompanhada do mais absoluto autocontrole. Seu desejado sucesso depende de sua resistência à tentação de abusar do poder.

Diante das condições objetivas atuais, parece certo que qualquer tentativa de propor eleição direta para resolver a crise é, na melhor das hipóteses, mais um exercício de autoengano. Essa situação, quer no TSE, pelas contradições entre a Constituição e o novo Código Eleitoral ou pela resistência da Câmara, ou pela doce ilusão de que se aprovará uma emenda constitucional, levará de 6 a 8 meses para ser implementada, quando o Brasil já estará na UTI.

Não é possível deixar de investigar o que realmente aconteceu e ponderar se os fins realmente justificam os meios. É impossível inocentar Temer "a priori", o que aliás já aconteceu com o "capo" da quadrilha. Há, entretanto, um caminho de "menor custo social" que parece factível. Talvez seja a hora do STF, corretamente sacralizado na Constituição, aplicar a ética consequencialista: incorporar na sua decisão as prováveis consequências implícitas das soluções alternativas. Isso sugerirá que a "menos ruim" das saídas da crise é aceitar o sobrestamento, até 1/1/2019, das questões que Temer deve esclarecer à justiça. Com isso, se dará nova força ao governo para continuar com as reformas. Tudo continuará funcionando, e o crescimento talvez se mantenha.

É preciso insistir. Nada disso beneficiará Temer. Ele apenas carregará o ônus e no futuro próximo responderá pelo que tenha feito.(...)

 

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4270, 06/06/2017. Brasil, p. A2.