País teve 318 mil jovens assassinados em uma década e mais de 70% eram negros

Ligia Guimarães e Juliana Schincariol

06/06/2017

 

 

Entre 2005 e 2015, o Brasil teve 318 mil jovens assassinados, a um ritmo que supera, desde 2012, a marca de 30 mil mortes violentas por ano. Só em 2015, a morte de jovens respondeu por 54,1% dos 59.080 homicídios registrados no Brasil. A maioria era negra: de cada 100 assassinados no Brasil, 71 são negros, de acordo com o relatório Atlas da Violência, divulgado ontem pelo Fórum de Segurança Pública e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). As vítimas dos assassinatos, além disso, são cada vez mais jovens: na média, aos 21 anos, contra os 25 anos em que eram assassinados em média na década de 80.

Na visão dos especialistas em segurança pública que assinam a elaboração do Atlas, a morte violenta dos jovens no Brasil evidencia um filme de "irracionalidade social" que se repete há várias décadas. Nele, a criança pobre passa pela infância sem acesso a educação de qualidade; é expulsa da escola quando se rebela, ficando ainda mais vulnerável e exposta aos incentivos ao crime ao longo da vida, cada vez mais curta. "Enquanto isso, a sociedade, que segue marcada pelo temor e pela ânsia de vingança, parece clamar cada vez mais pela diminuição da idade de imputabilidade penal, pela truculência policial e pelo encarceramento em massa", diz o estudo.

Com os 59.080 homicídios registrados em 2015, ante 60.474 em 2014, a taxa de homicídios brasileira passou a 28,9 homicídios a cada 100 mil pessoas. Já a taxa de homicídios da população jovem era de 60,9 mortes a cada 100 mil pessoas em 2015, crescimento de 17,2% sobre 2005. "Os homicídios no Brasil representam mais de 10% de todos os homicídios no mundo. É uma verdadeira crise civilizatória", diz Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea e um dos responsáveis pela pesquisa.

O retrato é ainda pior para a população negra, principal vítima dos assassinatos. Os homicídios de jovens e negros do sexo masculino no Brasil equivalem a uma situação de guerra, alerta o relatório, que aponta que o cidadão negro tem 23,5% mais chances de morrer assassinado quando comparado aos cidadãos de outras etnias, já descontado o efeito da idade, sexo, escolaridade, estado civil e bairro de residência.

No recorte por cor/etnia, os dados mostram realidades bem distintas. Na década de 2005 a 2015, a taxa de homicídio de negros cresceu 18,2%; a de indivíduos não-negros, por outro lado, caiu 12,2% no mesmo período. Verificou-se um aumento proporcional da diferença nas mortes violentas de negros em 16 Estados, sendo que essa diferença aumentou mais em Sergipe (171,9%). "Não apenas temos um triste legado histórico de discriminação pela cor da pele do indivíduo, mas, do ponto de vista da violência letal, temos uma ferida aberta que veio se agravando".

Comparando os dados por Estado, o Rio Grande do Norte traz os números mais alarmantes: a taxa de homicídios de negros subiu 331,8% entre 2005 e 2015. Enquanto no Estado a taxa de homicídios de negros era de 62,5 a cada 100 mil habitantes, entre os potiguares não negros a taxa era bem menor, de 11,2 a cada 100 mil habitantes.

O assassinato de negros, no entanto, é disseminado em todo o país. O Atlas destaca que em todas as Unidades da Federação, com exceção do Paraná, os negros com idade entre 12 e 29 anos apresentavam mais risco de exposição à violência que os brancos na mesma faixa etária. Em 2012, o risco relativo de um jovem negro ser vítima de homicídio era 2,6 vezes maior do que um jovem branco.

Enquanto os assassinatos de mulheres não negras tiveram redução de 7,4% entre 2005 e 2015, atingindo 3,1 mortes para cada 100 mil mulheres - ou seja, abaixo da média nacional -, os homicídios de mulheres negras cresceram 22% no mesmo período, chegando à taxa de 5,2 mortes para cada 100 mil mulheres negras, acima da média nacional. "Apesar do avanço em indicadores socioeconômicos e da melhoria das condições de vida da população entre 2005 e 2015, continuamos uma nação extremamente desigual", afirma o relatório.

Os dados mostram ainda um alarmante recrudescimento dos indicadores de homicídios nas regiões Norte e Nordeste entre 2005 e 2015. Dos dez Estados em que o número de homicídios cresceu mais de 100% na década analisada, cinco são do Nordeste e quatro do Norte: Rio Grande do Norte (280,5%); Sergipe (167,7%); Tocantins (164,7%); Maranhão (160,7%); Amazonas (145,7%); Ceará (145%); Roraima (113,7%); Bahia (108,7%) e Paraíba (104,3%). A exceção na lista dos maiores aumentos da década é Goiás, do Centro-Oeste, onde o número de homicídio cresceu 104,2%.

As regiões Norte e Nordeste também se destacam no expressivo aumento nos assassinatos de jovens. Com exceção do Tocantins e Amazonas, todos os estados com crescimento superior a 100% nas taxas de homicídios, entre 2005 e 2015, pertenciam ao Nordeste.

Além disso, os sete Estados em que a taxa de homicídios de jovens mais que dobrou são da região Norte ou Nordeste: Rio Grande do Norte (292,3%); Bahia (130,7%); Ceará (152,3%); Paraíba (117,7%); Sergipe (118,2%); Tocantins (158,8%); e Maranhão (148,9%). O Nordeste e o Norte também se destacam no ranking das cidades mais violentas do país. Dos 30 municípios mais violentos com população superior a 100 mil habitantes, 22 são do Norte ou Nordeste.

Ao comparar as cidades com mais de 100 mil habitantes com o menor índice de homicídios, Jaraguá do Sul (SC), e o maior, Altamira (PA), a primeira tem basicamente o dobro de jovens na escola. De acordo com Cerqueira, isso mostra que a questão educacional é de "primeira ordem".

A diretora-executiva do Fórum, Samira Bueno, comparou os homicídios no Brasil em 20 anos com a Guerra do Vietnã, conflito que durou duas décadas e em que morreu 1,1 milhão de pessoas. Entre 1995 e 2015, 1,3 milhão de pessoas foram assassinadas no país. Em outra análise, ela comparou o número de pessoas mortas no Brasil por ano a uma queda de um Boeing 737 cheio por dia. "A violência tem que ser prioridade para o desenvolvimento do Estado brasileiro", afirmou.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4270, 06/06/2017. Brasil, p. A2.