Data venia, Pátria amada
João Domingos 

10/06/2017

 

 

A mais importante sessão já feita pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – a que analisou a ação que propôs a cassação da chapa Dilma-Temer – deverá entrar para a História, como previsto pelos ministros da corte. Afinal, a impugnação de uma chapa vencedora de uma eleição muito disputada, polarizada, cujos resultados até hoje não foram totalmente resolvidos, e que acabou levando o País a uma crise política profunda e ainda sem saída, é uma coisa rara.

A decisão do TSE entrará para a história porque os ministros conseguiram a proeza de concluir que os fatos apurados pela própria corte foram “gravíssimos”, “que ocorreram crimes graves”, “que tudo precisa ser apurado e os responsáveis, punidos”, mas se negaram, eles, a aplicar a punibilidade.

Fizeram o que fez Pôncio Pilatos, citado pelo ministro Napoleão Nunes Maia, ao dar seu voto contrário à cassação da chapa, e lavaram as mãos. Disseram que o ministro Sérgio Moro, a quem qualificaram de “muito sério”, já está cuidando da punição. Napoleão, que disse considerar Pilatos um sábio, um poliglota, um nobre casado como uma parente do imperador romano Tibério Cesar, chegou a comparar o presidente do TSE ao personagem bíblico que tanta importância teve no julgamento de Cristo. Gilmar não disse se gostou da comparação. Pode-se concluir que a fala de Napoleão não fez justiça ao ministro. Ele não costuma lavar as mãos. Ele tem lado. E o assume.

Os quatro dias de julgamento foram de fato históricos. Gilmar Mendes chegou a dizer ao relator do processo, Herman Benjamin, que estava mandando a modéstia pessoal às favas. Se Benjamin vivia aquele momento de glamour, se era uma estrela de TV, devia isso a ele, presidente do TSE, que tinha lutado para impedir o arquivamento da ação. Benjamin respondeu que preferia o anonimato. Mas estava na cara que gostou do papel de protagonista.

Herman Benjamin foi provocado. E também fez provocações. Muitas. Até conseguir que seus detratores se calassem. E encerrou o longo voto com palavras dramáticas: “Como juiz, eu rejeito o papel de coveiro de prova viva. Posso até participar do velório, mas não carrego o caixão”.

Por tudo o que se viu, foram muitas as provas de caixa 2, caixa 3, doação irregular de caixa 1, gráficas que se utilizaram de laranjas, notas fiscais frias e uso de dinheiro de propinas pela chapa Dilma-Temer na eleição de 2014. Mas a maioria do tribunal resolveu que tais provas não valiam.

A ministra Rosa Weber, que votou pela cassação da chapa, ilustrou seu voto com citações de juristas consagrados, de Calvino e até do poeta modernista inglês T. S. Eliot: “Eu disse à minha alma, fica tranquila e espera. Até que as trevas sejam luz, e a quietude seja dança”.

Como um julgamento desses deixaria de passar para a história?

Durante quatro dias, os brasileiros acompanharam como nunca as notícias que chegavam do TSE. Talvez não esperassem a cassação da chapa Dilma-Temer. Não há nenhuma pesquisa conhecida até agora que confirme esse pensamento. Mas dava para perceber, nas ruas, que a sociedade esperava pelo menos que o TSE tomasse conhecimento de que a Operação Lava Jato existe. E que ela é que tem se tornado o motor do País nos últimos tempos. Como a Lava Jato foi desconhecida, embora citada o tempo todo, talvez o resultado do julgamento deixe na população aquele sentimento de frustração, algo parecido com os 7 a 1 da Alemanha no Brasil na Copa de 2014.

É bom lembrar ainda que o senador afastado Aécio Neves (em 2014 presidente do PSDB), que assinou a ação, disse ao empresário Joesley Batista que pediu a cassação da chapa ao TSE só para “encher o saco do PT”.

Foi, de fato, um julgamento para entrar para a história.

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‘Não se substitui presidente a toda hora’, diz Gilmar

Isadora Peron, Breno Pires, Beatriz Bulla, Leonencio Nossa, Thiago Faria e Eduardo Rodrigues 
10/06/2017
 
 
Presidente do TSE volta a dizer que corte não resolve crise política, enquanto Benjamin afirma que ‘conjunto da obra’ justifica punição

 

Pregando estabilidade institucional, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes, deu o voto decisivo para desempatar o julgamento e explicitou sua discordância com os argumentos apresentados pelo relator, ministro Herman Benjamin, que votou pela cassação da chapa formada por Dilma Rousseff e Michel Temer. Os dois protagonizaram os principais embates durante os quatro dias de julgamento.

Próximo ao Palácio do Planalto, Gilmar argumentou que “não se substitui um presidente da República a toda hora, ainda que se queira”. Para ele, isso não se trata de “fricote processualístico”, mas do equilíbrio do mandato.

Gilmar voltou a dizer que não é papel do TSE resolver “crise política”. Aos parlamentares que lhe procuraram nas últimas semanas, ele contou ter respondido que, se quisessem “impichar” o presidente, que fizessem pelas “vias normais”, pois o “tribunal não é instrumento para disputas políticas”.

A maior parte do julgamento foi destinada ao voto do relator. Benjamin defendeu a cassação da chapa Dilma-Temer por irregularidades na eleição de 2014. Já prevendo a derrota, ele ironizou a retirada das citações sobre a Odebrecht do processo.

“Eu, como juiz, recuso o papel de coveiro de prova viva. Posso até participar do velório, mas não carrego o caixão”, disse Benjamin.

Herman justificou que o “conjunto da obra” o levava a punir a chapa. O argumento foi acompanhado pelo ministro Luiz Fux, que, ao votar pela condenação, disse que o “juiz tem de aplicar a lei tendo em vista os fins sociais a que ela se destina”.

A maioria do tribunal, liderada por Gilmar, decidiu, no entanto, excluir do processo o material obtido pelos delatores da Odebrecht, que detalharam repasse de propina da Petrobrás para a campanha de 2014.

Odebrecht. Para Tarcisio Vieira de Carvalho, não há “prova cabal” de que recursos desviados da estatal abasteceram a campanha eleitoral. “Depoimentos de ex-dirigentes da Petrobrás nada dizem sobre financiamento eleitoral de 2014”, disse.

O ministro, indicado por Temer, neste ano, afirmou que “não há provas de que Dilma Rousseff ou Michel Temer tinham conhecimento de tal sistema de propinas”.

Ao rejeitar o uso dos depoimentos dos delatores, Gilmar citou o editorial do Estado publicado na edição de ontem.

“Uma coisa é a existência, pública e notória, da delação de 77 diretores e executivos da empreiteira Odebrecht. Outra é tomar os fatos narrados nas delações como verdade verdadeira, a dispensar posteriores provas.

O fato de todo mundo saber que as delações foram feitas não significa que o seu conteúdo corresponda à verdade ou relate os fatos com fidelidade e correção”, disse, citando trecho do texto.

Durante boa parte da exposição de seu voto, Benjamin tentou expor supostas contradições de Gilmar em relação ao seu voto sobre o não arquivamento da ação, feito em 2015.

Na ocasião, o agora presidente da corte eleitoral votou por considerar as informações da Operação Lava Jato no processo na corte eleitoral.

Apesar de reconhecer as suas diferenças com o PT, Gilmar falou que não imaginou cassar o mandato de Dilma, mas que, na época, sua decisão foi por conhecer “entranhas do sistema”.

O presidente do TSE disse ainda que não pratica a “lógica de amigo e inimigo” e que, se o Judiciário começar a perseguir inimigos, “daqui a pouco todos serão inimigos”.

No fim do julgamento, Gilmar elogiou ao relator, a quem chamou de amigo e disse que Herman fez um “brilhante trabalho” em “um julgamento histórico”. 

O que eles disseram

“É igualmente criminoso o policial, o procurador, o delegado, que usa de truque para obter resultado.”

Gilmar Mendes

“Eu, como juiz, recuso o papel de coveiro de prova viva. Posso até participar do velório, mas não vou carregar caixão.”

Herman Benjamin

“Se há a tese de gordura poupança (de Herman), todos os partidos estão contaminados. Vamos fechar as portas dos partidos?”

Admar Gonzaga

“Pôncio Pilatos tinha a admiração que tem vossa excelência (Gilmar) hoje no Brasil.”

Napoleão Maia Nunes Filho

“É a trinca no cristal da democracia, o rompimento da lisura.”

Rosa Weber

“Vou me sentir confortável em usar o instrumento para não encarar realidade? Não.”

Luiz Fux

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Tribunal Superior Congressional 

Rubens Glezer

10/06/2017
 
 

 

A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de absolver a chapa Dilma Rousseff-Michel Temer não teve nada de juridicamente excepcional. Como também teria sido juridicamente ordinária a absolvição de todos os réus do mensalão. Mas, ainda assim, o julgamento é um marco que precisa e deve ser relembrado por muito anos.

É possível apresentar a decisão de maneira perfeitamente normalizadora: absolveu-se a chapa porque não havia provas suficientes de que o dinheiro ilícito doado aos partidos políticos foi usado nas campanhas eleitorais. Além disso, se poderia acrescentar que nas “provas suficientes” não foram consideradas as obtidas ilicitamente ou que se referissem a fatos que não foram especificamente descriminados no início do processo. Porém, a dinâmica do julgamento do caso mostra que essa narrativa é excessivamente simples a ponto de estar equivocada.

Para descrever corretamente o que aconteceu é preciso dar conta de certos fatos: um ministro que em 2015 aceitava todo o tipo de prova para a condenação e em 2017 reivindica a parcimônia do Judiciário; de um dos ministros declarar guerra ao Ministério Público Federal por trazer ao tribunal um questionamento sobre a imparcialidade de um de seus membros; a desmoralização pontual das delações premiadas; as provocações, insinuações e embates destemperados entre ministros; e, acima de tudo, a impressão de que ninguém estaria disposto a julgar diferente em razão de qualquer fato, prova, argumento ou raciocínio apresentado durante o julgamento.

Esses elementos comprometem a legitimidade do discurso jurídico, que independe em grande parte do resultado, mas de decisões bem ordenadas e fundamentadas em boas razões. Isso significa que a despeito do que se decidiu, a população parece ter ficado com a impressão de que o ambiente do julgamento lembrava muito mais o Congresso Nacional do que o Judiciário. É justamente por isso que o julgamento será um marco: do momento em que a reputação popular desses dois Poderes ficou igualmente baixa. Mais um passo importante na crise de legitimidade das instituições brasileiras.

 

O Estado de São Paulo, n. 45161, 10/06/2017. Política, p. A6