Governo quer R$ 1,5 bi em leilão da Norte-Sul, mas cláusula gera temor

Daniel Rittner

14/06/2017

 

 

O sucesso no leilão da Ferrovia Norte-Sul, anunciado para 15 de fevereiro de 2018, depende essencialmente das regras sobre o acesso da futura concessionária à rede de trilhos que leva aos portos de Santos (SP) e Itaqui (MA).

Ao lançar ontem a concessão do projeto à iniciativa privada, representantes do governo informaram que haverá garantia contratual sobre o direito de passagem nas outras malhas ferroviárias, mas não detalharam ainda quantos trens poderão ter acesso a essas redes para chegar aos portos. Os estudos econômicos da Norte-Sul, bem como as minutas de edital e de contrato, serão colocados em audiência pública entre 23 de junho e 9 de agosto.

A concessão para operar um trecho de 1.537 quilômetros entre Porto Nacional (TO) e Estrela D'Oeste (SP), cujas obras são executadas com orçamento público e estão quase prontas, será feita por 30 anos - com possibilidade de renovação por mais 30. Vencerá a disputa quem der o maior lance. Ainda não foi divulgado o valor mínimo de outorga. O governo já vê pelo menos quatro grupos interessados e tem uma estimativa de arrecadar em torno de R$ 1,5 bilhão para os cofres do Tesouro Nacional. VLI, MRS Logística, a operadora russa RZD e a gigante chinesa CCCC já demonstraram ao Palácio do Planalto interesse em participar da licitação.

No entanto, uma regra que constará da primeira versão do edital desagrada investidores e pode até afastar concorrentes da disputa. Trata-se da cláusula "take or pay", determinando que a futura concessionária pague pelo acesso às demais redes ferroviárias. Para chegar ao porto de Santos, os trens vindos da Norte-Sul precisam passar por toda a Malha Paulista, operada pela Rumo. No caminho para Itaqui, eles terão que trafegar necessariamente pela rede da VLI e da Vale.

Fontes do setor privado afirmam que, na prática, essa cláusula duplica o risco de demanda na concessão da Norte-Sul. Explica-se: quem vencer o leilão já teria que assumir, como é natural em todas as concessões, o risco de não haver tanta carga como projetam os estudos. Mas, além disso, precisaria fechar acordos com as demais operadoras reservando espaço em suas malhas para a passagem dos trens. A premissa do "take or pay" é que o pagamento tem que ser feito mesmo se a demanda não se concretizar.

De qualquer forma, o ministro Moreira Franco (Secretaria-Geral) ressaltou que não é hora de ter todas as respostas. "A audiência pública permitirá que os detalhes se apresentem. Não haverá debate ligeiro ou açodado", disse. Sessões presenciais já estão agendadas em cinco cidades: Goiânia, Palmas, Uberlândia, São Paulo e Brasília.

Para ele, o leilão da Norte-Sul marca a retomada de projetos no setor. "Carecemos, no campo logístico, de uma estrutura ferroviária adequada. O tamanho do nosso país impõe que o modal de transporte para passageiros seja a aviação. Mas, para garantir a competitividade de produtos que a natureza nos dá, precisamos de trilhos."

O governo promete entregar todas as obras de extensão da ferrovia, entre Ouro Verde (GO) e Estrela D'Oeste, em até nove meses. Para isso, o ministro dos Transportes, Maurício Quintella, esclareceu que a estatal Valec já dispõe de R$ 505 milhões assegurados neste ano. A proposta orçamentária de 2018 prevê outros R$ 360 milhões para finalizar o trecho a ser concedido, que já tem mais de 95% de execução.

A futura concessionária vai receber uma ferrovia pronta, mas sem operações regulares, e precisará investir R$ 3 bilhões. O grosso irá para a compra de material rodante (locomotivas e vagões), mas uma parte dos recursos deve ser alocada também em sinalização e sistemas de comunicação.

As estimativas oficiais apontam, em um cenário descrito como "conservador" pelo governo, que haverá 1,2 milhão de toneladas de cargas imediatamente e cerca de 8 milhões de toneladas em 2020. O secretário de projetos do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), Tarcísio Freitas, frisou que a demanda projetada e a reserva de cargas para o direito de passagem em outras malhas "estão compatíveis".

Essa não é a avaliação de Bernardo Figueiredo, ex-presidente da Empresa de Planejamento e Logística (EPL), hoje representante no Brasil da RZD, empresa estatal que opera 85 mil quilômetros de trilhos na Rússia. Segundo ele, conforme os termos propostos pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para a renovação do contrato da Malha Paulista, a Rumo ficará obrigada a abrir sua rede para apenas dois trens por dia oriundos da Norte-Sul. Isso significa algo próximo de 3 milhões de toneladas anuais, o que corresponderá a menos de 5% da capacidade total com as obras de ampliação que a Rumo se compromete a fazer. Figueiredo menciona esse descasamento e a cláusula de "take or pay" como fatores que podem tirar a RZD do leilão.

Moreira informou que, em viagem a Moscou nos dias 20 e 21, o presidente Michel Temer "venderá" o projeto para os russos.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4276, 14/06/2017. Brasil, p. A2.