O que esperar da política monetária?

Affonso Celso Pastores

04/06/2017

 

 

Os países desenvolvidos vêm gradativamente retomando o crescimento, mas o reconhecimento desta tendência é recente. Até há pouco ainda conviviam dois grupos: os que achavam intelectualmente excitante a ideia de que o mundo era vítima de uma “estagnação global”; e os que se assustavam com ela. O pedigree dos teóricos que referendavam aquela hipótese era atraente: foi inventada há algumas décadas por Alvin Hansen, e até hoje é insistentemente defendida por Larry Summers. Por alguma razão, a poupança dos países avançados teria crescido permanentemente em relação aos investimentos, jogando para baixo a taxa neutra de juros e levando os países ao paradoxo de que nem com juros reais negativos haveria crescimento. Estaríamos presos à “armadilha da liquidez” e, a menos que os países desenvolvidos se engajassem em uma política fiscal expansionista, o mundo estaria condenado à estagnação.

Infelizmente para seus adeptos, a hipótese tem sido negada pelos fatos. A economia dos EUA já chegou ao pleno emprego e continua crescendo, com o Fed abandonando medidas monetárias não convencionais iniciando a elevação da taxa de juros. Apesar de diferenças entre países, a Europa também retomou o crescimento. Onde está a estagnação? É possível que a economia de algum país esteja estagnada, mas este está muito longe de ser um fenômeno global. A hipótese enunciada por Reinhart e Rogoff pode ser menos atraente, mas na minha visão tem maior poder explicativo. O baixo crescimento dos países avançados seria decorrência do endividamento excessivo dos governos, empresas e famílias, e esta lição é importante para o caso brasileiro.

Nossa dívida pública é grande demais e, apesar de todo o esforço do ajuste fiscal, deverá continuar crescendo nos próximos anos. Quanto ao setor privado, os dados para as empresas privadas não financeiras mostram um endividamento elevado, e a expansão acelerada do crédito às famílias as levou a um comprometimento de renda que se constitui em um freio ao consumo.

A duras penas as empresas vêm reduzindo sua dívida líquida em relação ao Ebitda, e as famílias vêm reduzindo o estoque de sua dívida, o que, combinado com juros mais baixos, deverá colocar a economia em recuperação. Mais preocupante, no entanto, é a perspectiva sobre o overhang da dívida pública.

A emenda constitucional que congela os gastos primários em termos reais foi um primeiro passo, mas terá de ser seguida de reformas como a da Previdência, e complementada por revisões tributárias que elevem as receitas. Na ausência dessas duas ações, continuaremos assistindo a uma dinâmica perversa da dívida pública, que tende a elevar os riscos e a remover o espaço para uma queda mais acentuada da taxa de juros, que é fundamental para a retomada do crescimento.

Não temo o risco da dominância fiscal, que chegou a assustar ao final de 2015, mas o desequilíbrio fiscal deslocaria o balanço de riscos na direção de quedas menores da taxa de juros, com consequências desastrosas sobre a recuperação do crescimento e sobre a própria dinâmica da dívida.

Olhando para a força desinflacionária que vem do hiato negativo do PIB e para a queda acelerada da inflação, mesmo em meio à atual crise política, o Banco Central pode reduzir a taxa de juros, como o fez na última reunião do Copom. Mas, dependendo dos efeitos da crise política sobre a continuidade das reformas, no campo fiscal o balanço de riscos se desloca na direção de um menor grau de estímulos monetários.

Se não criarmos condições para que o País possa eliminar a percepção do risco vindo da dinâmica perversa da dívida, aprovando a reforma da Previdência e criando condições políticas para elevar impostos e/ou reduzir desonerações tributárias nos próximos anos, a perspectiva de crescimento da dívida bruta elevará os riscos, tolhendo os estímulos ao crescimento.

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Estados fazem malabarismo tributário 

Altamiro Silva Junior e Douglas Gavras

04/06/2017

 

 

Queda na arrecadação leva governador a lançar mão de depósitos judiciais, cobrar ‘pedágio’ de incentivo fiscal e deduzir crédito consignado

A forte recessão no País levou governos estaduais a lançar mão de uma série de malabarismos tributários, na tentativa de compensar a queda de arrecadação e conseguir recursos extraordinários. Especialistas ouvidos pelo ‘Estado’ relataram ao menos dez práticas pouco tradicionais de aumento de receita adotadas nos últimos anos, que incluem apropriação de depósitos judiciais, antecipação de royalties de petróleo, retenção de créditos acumulados de ICMS e dedução de parcelas de consignado a servidores sem repasse aos bancos.

Medidas assim, embora não sejam necessariamente ilegais, foram algumas das formas encontradas, sobretudo pelos Estados com maiores déficits, para diminuir o rombo nas contas.

Só em 2015, 11 governadores sacaram R$ 17 bilhões de depósitos judiciais, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Esses fundos são formados por recursos públicos, de empresas ou pessoas físicas envolvidas em disputas e servem para pagar multas ou indenizações.

Durante a crise, os três governos que mais utilizaram dessa alternativa foram justamente os mais endividados: Rio de Janeiro, Minas, e Rio Grande do Sul.

Na busca por recursos emergenciais, alguns governadores foram além e fizeram uso de montantes relacionados a litígios privados, nos quais o Estado nem estava envolvido.

Com o frequente uso dos depósitos judiciais, o Supremo decidiu frear essa prática, e foi preciso lançar mão de outras alternativas, lembra Raul Velloso, especialista em finanças públicas.

“Por serem receitas extraordinárias, que dificilmente se repetirão, os governadores logo se veem obrigados a buscar novas fontes de renda.” Ele lembra que os gastos com Previdência têm o maior peso.

O rombo com a Previdência nos Estados chega a R$ 79,5 bilhões, segundo estudo da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). Assim como nos depósitos judiciais, Rio Grande do Sul e Minas Gerais estão entre os que mais direcionaram fundos ao pagamento de inativos e pensionistas no ano passado: 53% e 38%, respectivamente.

No Rio, o comprometimento foi de mais de 30%.

“A imaginação dos Estados é enorme”, diz Bernard Appy, do Centro de Cidadania Fiscal. Entre outros exemplos, ele cita o fim de incentivos fiscais.

Outra estratégia foi a apropriação de recursos do pagamento de parcelas do crédito com desconto em folha, que eram retiradas dos salários dos servidores e não repassadas aos bancos. O diretor de uma grande instituição financeira conta que o crédito consignado era encarado pelo banco como um empréstimo praticamente sem risco, mas os modelos de concessões tiveram de ser revistos.

José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, alerta que o uso das práticas pouco habituais para aumentar a arrecadação vem crescendo. “Estariam ocorrendo até operações de antecipação de receita futura do ICMS.”

Alívio imediato. Um caso recente levou a um questionamento judicial no Rio. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) acusou o governo de criar um imposto sem ter competência para isso, ao condicionar o aproveitamento de incentivos do ICMS a depósitos em favor do Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal (Feef), criado há dois anos para sanar as contas.

O gerente jurídico da CNI, Cassio Borges, ressalta que a estratégia era criar um “pedágio” para manter o benefício e foi usada por outros governos, como o da Bahia. “Era um empréstimo compulsório e só quem poderia estabelecer isso é a União.” No início do mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) barrou o pedido da CNI, e o Rio pôde manter a fonte de renda. Além desse caso, Borges cita a criação de taxas de fiscalização de energia e de recursos minerais e hídricos em Estados como Minas, Pará e Amapá.

“A criatividade, no entanto, não soluciona a complicada situação orçamentária”, diz Marcos Lisboa, presidente do Insper.

“São medidas paliativas.

Os governos precisam planejar o orçamento contando com fontes de renda regulares.” Em nota, a Secretaria da Fazenda do Estado do Rio reconhece que tomou medidas, como a alienação de imóveis, a antecipação de royalties de petróleo e o uso dos depósitos judiciais.

Segundo o órgão, foram sacados R$ 6,7 bilhões desses recursos em 2015, e as medidas tiveram aprovação da Assembleia.

Sobre a falta de repasse do crédito consignado, o Rio ressalta que houve um problema nos meses de março e abril do ano passado, “após sucessivos arrestos judiciais e bloqueios que somaram R$ 790 milhões, que nos levaram a negociar com os bancos”.

O Estado da Bahia diz ter acompanhado a decisão do Confaz, endossada pelos governadores do Nordeste, a respeito da estratégia de se criar uma espécie de “pedágio”, para recebimento de incentivos de ICMS.

O Pará afirma que tem buscado o equilíbrio nas contas públicas, adotando medidas de ajuste, corte do número de órgãos subordinados e redução na frequência de concursos. “Isso não significa que tenhamos recursos sobrando.” Os governos de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul e do Amapá não se pronunciaram.

Soluções temporárias

“São medidas paliativas. Os governos precisam planejar o orçamento contando com fontes de renda regulares.”

Marcos Lisboa

PRESIDENTE DO INSPER

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Assembleias aumentam pressão por reembolsos da Lei Kandir

Douglas Gavras

04/06/2017

 

 

Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul alegam ter tido as perdas mais expressivas com isenções de imposto

Ávidos por receita e com dificuldade de colocar em prática as medidas de equilíbrio fiscal, os Estados estão voltando os olhos para os reembolsos dos recursos da Lei Kandir. Instituída em 1996, ela isentou o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para exportações de produtos primários e semielaborados.

Os mais endividados estão entre os que alegam maiores perdas com a lei, de 1997 a 2015, segundo estudo do governo do Pará: Minas (R$ 92,2 bilhões), Rio (R$ 49,2 bilhões) e Rio Grande do Sul (R$ 41,8 bilhões), em valores corrigidos. Com todos os Estados somados, a perda é de R$ 466,9 bilhões.

Até 2003, era garantido aos governadores a compensação do que deixou de ser arrecadado com a isenção do tributo. No ano seguinte, um texto complementar manteve o direito de repasse, mediante recursos alocados no orçamento da União, mas sem fixar valor.

Amparados por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em novembro passado, deu prazo de 12 meses para que o Congresso regulamente a compensação pelas perdas, os Estados têm se unido para recuperar receita. A determinação da Justiça não deixou claro se as restituições serão regressivas.

Em grave crise fiscal, que afeta até o pagamento dos servidores, o Rio enviou parlamentares da Alerj em março para tratar do assunto diretamente com o presidente Michel Temer. “Ele disse que o Supremo decidiu que precisa fazer a regulamentação, mas ela ainda não existe”, diz o parlamentar fluminense Luiz Paulo (PSDB).

Há mobilização também em Minas Gerais, no Pará e em Mato Grosso do Sul, entre outros exportadores que se sentem prejudicados.

No início de maio, após encontro de parlamentares estaduais com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a Casa instalou comissão especial para analisar as mudanças na lei.

Para o ex-diretor do Banco Central Alexandre Schwartsman, a pressão dos Estados por recursos da Lei Kandir, no entanto, pode criar um precedente fiscal ruim. “Cortar despesas ninguém quer. A lei tem 20 anos, o que tinha de ser reembolsado já foi. O nó dos orçamentos estaduais é que precisa ser desatado.” 

 

O Estado de São Paulo, n. 45155, 04/06/2017. Economia, p. B4