Total de conduções coercitivas cresce 304% pós-Lava Jato

Marcelo Godoy

02/07/2017

 

 

Em quatro anos, mandados expedidos em operações passaram de 564 (2013) para 2.278 (2016) e se espalharam por todo o País

Em quatro anos, as conduções coercitivas cumpridas pela Polícia Federal se multiplicaram por quatro no País. Em 2013, antes do início da Lava Jato, a PF registrara o cumprimento de 564 mandados desse tipo. A partir de 2014 – começo da operação –, o total de pessoas acordadas de manhã em casa por agentes federais e levadas para depor em uma delegacia cresceu ano a ano até chegar aos 2.278 casos registrados em 2016 (aumento de 303,9%).

Os dados foram obtidos pelo Estado por meio da Lei de Acesso à Informação e englobam todos os mandados cumpridos no País de 1.º de janeiro de 2013 a 31 de março de 2017. O método está disseminado por todas as superintendências da Polícia Federal no País. Apesar de a PF no Paraná ser a que mais usou a condução coercitiva no período, a Lava Jato responde por apenas 3,3% das vezes em que a medida foi aplicada a suspeitos e testemunhas. Foram 200 vezes até 31 de março. Desde 2013, a PF já cumpriu 6.027 mandados em 2.266 operações.

A legalidade da medida é contestada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que entrou com uma ação de descumprimento de preceito fundamental no Supremo Tribunal Federal (STF). A polêmica ultrapassou os limites das salas dos cursos de Direito quando o expresidente Luiz Inácio Lula da Silva foi alvo de uma condução coercitiva na 24.ª fase da Lava Jato. Desde então, a medida já atingiu empresários, como Joesley Batista, da JBS, o presidente da Assembleia Legislativa do Rio, Jorge Picciani (PMDB), e até o pastor Silas Malafaia.

A discussão sobre a medida divide o mundo jurídico, embora a maioria dos especialistas ouvidos pelo Estado diga que o entendimento predominante no País é o que contesta sua legalidade.

Recebe, no entanto, apoio majoritário de procuradores e delegados. Esse é o caso do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor de Processo Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Guilherme de Souza Nucci.

Para ele, a questão tem duas abordagens. A primeira é quando a condução coercitiva é aplicada em testemunhas. “Nesse caso, tanto o Código de Processo Penal quanto o de Processo Civil dizem que só pode haver coercitiva quando a testemunha é intimada, não comparece e não justifica. O que faz o (juiz Sérgio) Moro? Marca uma audiência e manda buscar na hora.

Essa condução de testemunha não existe, pois não se pode decretar a prisão temporária de uma testemunha. O poder geral de cautela de um juiz é absurdo em processo penal. Processo penal é regido pela legalidade estreita.

Um magistrado não pode usar o poder geral de cautela para constranger pessoas.”

Poder. O chamado “poder geral de cautela” é um instrumento previsto no Código de Processo Civil para garantir a simplificação do processo e uma Justiça rápida e eficaz. “Não vejo vedação do uso desse instrumento.

A condução coercitiva é medida menos gravosa. Pelo princípio da proporcionalidade, evita- se a decretação de medida da prisão temporária. Creio que a ação da OAB pode ser um tiro pela culatra. Se o STF considerar a coercitiva ilegal, o número de prisões temporárias por 24 horas, 48 horas vai subir”, afirmou o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, que atuou na Operação Custo Brasil, que conduziu coercitivamente o ex-ministro da Previdência Carlos Gabas.

Nucci volta a carga contra a condução coercitiva de réus.

“Ele tem o direito de permanecer em silêncio. Se ele pode decretar a temporária, então o dever do magistrado é decretar a temporária. Não se pode barganhar ou criar lei nova.” Mesmo parecer tem a desembargadora Ivana David, do TJ-SP. Por sete anos ela permaneceu à frente do setor responsável pela decretação de prisões temporárias e quebras de sigilo em São Paulo.

“A OAB está certa. O Moro é um juiz maravilhoso, mas a condução coercitiva aplicada dessa forma não tem previsão legal.

Acho, como cidadã, que uma viatura da PF parar na porta da casa de uma testemunha às 6h30 é um constrangimento.” Foi o que aconteceu com o jornalista Breno Altman. “Até hoje minha mulher acorda todos os dias às 6 horas em razão do trauma.

A condução coercitiva é um processo de tensão, um processo de intimidação.” Altman era testemunha quando sua condução foi decretada. Mais tarde foi denunciado, mas acabou absolvido por Moro.

Ilegalidade. Para o procurador do Ministério Público de São Paulo Márcio Sérgio Christino, a condução coercitiva é uma forma de privação da liberdade que extrapola a previsão legal. “Nunca a usei dessa forma”, disse o procurador, que se especializou no combate à criminalidade organizada.

Para Nucci, o que explica o crescimento do uso das conduções coercitivas no País “é a impunidade”.

“O Moro começou e não foi punido. Então todos os juízes disseram: também posso.

Está um descalabro isso.” Para ele, em tese, os magistrados que concederam coercitivas de testemunhas “deviam ser processados por abuso de autoridade”.

“Mas não vai dar em nada, que todos vão alegar ausência de dolo, mas que daria para punir todo mundo daria.” Os especialistas são unânimes em afirmar que, caso as conduções coercitivas sejam consideradas nulas pelo Supremo, o prejuízo para as investigações deve ser pequeno. Isso porque, em tese, essa decisão afetaria somente aquele depoimento tomado sob conduções e não o restante dos processos em que elas estão inseridas.

Trauma

“Até hoje minha mulher acorda todos os dias às 6 horas em razão do trauma. A condução coercitiva é um processo de tensão, um processo de intimidação.”

Breno Altman

JORNALISTA

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Biografia de Marcelo revela ‘teologia’ da Odebrecht

Pedro Venceslau

02/07/2017

 

 

Livro desvenda o sistema de pagamento de propinas de empreiteira e conta bastidores das relações da família

Dois anos depois da prisão do empresário Marcelo Odebrecht, a primeira biografia do ex-presidente do grupo que leva seu sobrenome chega às livrarias na próxima quinta-feira sem a chancela ou colaboração oficial da família, mas também sem a sua oposição.

Várias tratativas foram feitas entre os autores e o clã, que chegou a sinalizar interesse em participar. A conversa não avançou nas negociações, mas mesmo assim os autores, os jornalistas Marcelo Cabral e Regiane Oliveira, tiveram acesso ao até então impenetrável universo familiar dos Odebrecht.

Se não traz novidades no campo policial, o livro de 400 páginas apresenta um retrato inédito da ideologia por trás da criação do sistema profissional de pagamento de propinas e caixa 2 para uma legião de políticos de todos os espectros ideológicos.

Marcelo subverteu a cultura corporativa criada pelo seu avô, Norberto Odebrecht, uma espécie de teologia que prega a honestidade e a transparência.

O Príncipe – Uma biografia não autorizada de Marcelo Odebrecht, da Editora Astral Cultural, mostra como a Tecnologia Empresarial Odebrecht, batizada de TEO para os iniciados, passou de apenas um guia corporativo para uma “teologia” empresarial que rege a visão de mundo dos convertidos para muito além do escritório.

A TEO começou a ser praticada por Norberto ainda na década de 1940 e foi sendo ampliada aos poucos, até ser formalizada a partir dos anos 1970. A diferença é que outros processos de gestão corporativa em voga dentro das empresas, como o Lean, da Toyota, são basicamente manuais que estipulam regras destinadas a aumentar a produtividade no trabalho.

A TEO é mais do que isso: é uma espécie de filosofia de como viver a vida. A publicação mostra que os colaboradores viam Marcelo Odebrecht não só como um líder empresarial, mas como o portador de um conjunto de valores passados de pai para filho.

Tudo isso desmoronou com sua prisão, em 2015.

Embate. O livro apresenta também um retrato da relação conturbada entre Marcelo e o pai, Emílio, que foi o primeiro a sugerir a delação. A resistência inicial do filho em aceitar a proposta abriu uma discussão que contaminou toda a família.

Desde a adolescência de Marcelo, inúmeras pequenas discussões marcaram o dia a dia dos dois, causadas pelos motivos mais inocentes possíveis.

A obra ainda esmiúça os hábitos e a personalidade controladora do “príncipe”. Ele é apresentado como um executivo avesso a ostentações, mas habituado a manter um controle “marcial” sobre o ambiente, até mesmo dentro da prisão. Em sua cela no Complexo Médico de Pinhais, no Paraná, o detento mantinha sobre seus dois companheiros, ambos ex-diretores da Odebrecht, a mesma hierarquia da empresa.

Príncipe. Marcelo está preso desde 2015, mas apenas neste ano fechou acordo de delação

Prisão. Cela no Complexo Médico de Pinhais, no Paraná, onde está o herdeiro da empreiteira

O PRÍNCIPE

Autores: Regiane Oliveira e Marcelo Cabral Editora: Astral Cultural 400 págs

 

O Estado de São Paulo, n. 45183, 02/07/2017. Política, p. A10