Doação eleitoral ou propina?

Fábio Tofic Simantob

10/07/2017

 

 

A Procuradoria-Geral da República, saiu na imprensa, decidiu rever um entendimento inicial da Lava Jato. Antes, os procuradores diziam que caixa 2 e corrupção eram uma coisa só. Agora, os que manusearam recursos via caixa 2 para fins eleitorais receberão punições mais brandas. Só os que se envolveram em casos de corrupção enfrentarão penas mais severas.

A notícia é positiva, porque a Procuradoria-Geral parece ter-se dado conta de que nem todos são iguais. Há os que se locupletaram, mas há também os que só transgrediram. No caso do caixa 2, transgressão semelhante à praticada pelos que remeteram recursos ao exterior, por fora, e tiveram o direito a uma anistia em troca do pagamento de uma multa.

Ao contrário do que se apregoava, nem todos são corruptos. Pela decisão, não será a forma de entrega dos recursos, por dentro ou por fora, que definirá o crime. O que será relevante é se o beneficiário dos recursos concretizou ou prometeu concretizar alguma contrapartida. Só então se falará em corrupção.

A nova, justa e bem-vinda compreensão, no entanto, não soluciona uma segunda discussão dela derivada, que é tão ou mais importante. Ficou resolvido que, para a Procuradoria, toda corrupção resulta em contrapartida (real ou prometida). Mas, e o inverso? Toda contrapartida (real ou prometida) resulta de corrupção?

Exemplo: um empresário que vende sapatos apoiou em certa eleição um candidato a deputado federal oriundo da cidade paulista de Franca, conhecido polo calçadista. Aí, o empresário é preso e delata o deputado, contando ter financiado a campanha em troca de projetos de lei que o beneficiaram.

No Congresso Nacional, a Polícia Federal descobre que o deputado de fato apresentou projetos de lei que beneficiaram a região e o setor calçadista, o que foi bom para o empresário. Estaremos diante da seguinte sequência fática: houve a delação, houve a doação e existem os projetos de lei. Estamos diante de um caso de corrupção? No entendimento que o Ministério Público tem dado até agora, sim. Em algum país do mundo empresários doam a políticos determinados a trabalhar contra seus interesses?

A confusão se acentuou com a profusão de delações feitas por empresários e lobistas. Seus relatos nos levam a acreditar que a entrega de recursos concretiza, inexoravelmente, um ato de corrupção. Ah, paguei, sim, e ele me apoiou na medida provisória x. Ah, entreguei os recursos e contei com a ajuda dele no encaminhamento do projeto y. Ou seja, tudo propina. Não é demais lembrar que até 2014 a lei permitia contribuições empresariais de campanha, agora proibidas.

Imagine, naquele tempo, dois candidatos a deputado federal procurando um empresário do agronegócio em busca de apoio. Um defende causas ruralistas e o outro, a reforma agrária. Quem o empresário tende a apoiar? Obviamente, o ruralista, que, se eleito, defenderá causas do agronegócio. Bingo: teremos corrupção?

Um senador que se elege defendendo a desoneração da atividade industrial e basicamente se financia com dinheiro da indústria, ou aquele que defende a liberação das armas e se financia com dinheiro da indústria bélica, quando chegam ao Parlamento, devem abster-se de votar a favor dos que os financiaram? Se votarem de acordo, como prometeram, estarão fazendo comércio com o mandato parlamentar? Estariam cometendo corrupção? Isso faz algum sentido? E se a solicitação de ajuda de campanha é feita por candidato que já ocupa função pública e busca reeleição? Se isso for crime em si, melhor proibir a reeleição.

Não há dúvidas de que a Lava Jato flagrou gente barbarizando no manuseio dos recursos públicos. Lambuzaram-se tanto que não há como explicar. A prova é farta. Mas como tratar os que não se lambuzaram, mas ainda assim foram delatados? E foram delatados porque quanto mais grave a acusação do delator, maior o benefício concedido no acordo com o Ministério Público. Propina virou senha mágica para a obtenção dos benefícios sonhados com a delação.

A doação eleitoral contém, ademais, todos os elementos da corrupção. Oferecimento de vantagem econômica, contrapartida esperada por quem doa e cargo ou função pública envolvidos. Então, sempre será corrupção? Evidente que não.

Se, porém, as autoridades não fizerem nada, todos serão condenados. Culpados e inocentes. Será preciso definir um limite a partir do qual termina a doação eleitoral e começa a corrupção. Será preciso distinguir a natureza da contrapartida que o doador, agora convertido em delator, afirma ter recebido em razão das doações eleitorais realizadas. Se eminentemente pessoal, não autorizada pelo poder público, ilegal, feita na forma de favor, de agrado, benesse ou jeitinho, aí, sim, será difícil negar a corrupção.

Os delatores estão no papel deles, que é o de entusiasmar os acusadores e - distorção à brasileira - empolgar a opinião pública com performances por vezes até midiáticas. À Justiça, porém, cabe uma tarefa muito mais séria e difícil, que é não deixar que o frenesi causado pelas delações se sobreponha ao exame racional, sóbrio, frio e imparcial dos fatos. Julgar é distinguir, é categorizar as várias modalidades de doação eleitoral relatadas nas delações, e dar a cada caso o que é seu.

Se toda contrapartida continuar a ser apresentada como propina, fica aqui uma sugestão. Peguem-se as listas de financiadores das últimas campanhas eleitorais de todos os vereadores, prefeitos, deputados estaduais, governadores, deputados federais e senadores. Daí, é só cruzar com o que cada um prometeu ou fez nos mandatos. Nem precisa de delação. Se houver qualquer associação possível entre o que fez o político e o interesse de seus financiadores, cana! Serão todos condenados.

(...)

 

O Estado de São Paulo, n. 45191, 10/07/2017. Espaço aberto, p. A2