O Estado mágico

Antonio Delfim Netto

27/06/2017

 

 

A maior ilusão de uma "esquerda primitiva" é que o Estado é mágico e que, através de seu poder incumbente transitório, pode criar recursos. Nada é mais falso. E nada tem consequências mais deletérias sobre o processo de construção de uma sociedade civilizada onde devem coexistir: 1) a plena liberdade de iniciativa; 2) a relativa igualdade de oportunidades, sob a coordenação; 3) de um Estado forte, constitucionalmente limitado capaz de controlar a organização da economia (difusa em toda a atividade social) para obter a eficiência produtiva que permita a todo cidadão gozar os dois valores anteriores.

É preciso insistir: o máximo que o Estado pode fazer é redistribuir (não sem antes consumir uma parte) o que já foi produzido, somado ao que ele eventualmente ganhou de presente (como é o caso do aumento de sua relação de troca), e ao que ele tomou emprestado de um vizinho, que um dia será devolvido com juros. Ele só terá aumentado a produtividade do sistema se o tiver sido aplicado em investimento com taxa de retorno social superior à taxa de juros. O problema é que o desenvolvimento econômico (que é condição necessária, ainda que não suficiente para que ele seja inclusivo e equânime) depende, basicamente, de como a sociedade utiliza o seu excedente produtivo na acumulação dos investimentos. O investimento é o trabalho vivo cristalizado pela capacidade inventiva do homem, que o transforma em bens de produção que aumentam a sua produtividade. Secular experiência empírica mostra que a velocidade do aumento da produtividade do trabalho vivo depende, basicamente, da capacidade da sociedade de inventar novas tecnologias e incorporá-las ao aumento do estoque de capital à disposição de cada trabalhador com a capacidade para operá-lo.

É hora de introjetar que o desenvolvimento econômico é apenas o outro nome do aumento da produtividade do trabalho vivo. Sua continuidade depende de uma permanente harmonia entre o que a sociedade consome para sua sobrevivência e reprodução e o que ela destina à acumulação do estoque dos bens de produção - o investimento. Pois bem. É esta harmonia que a "esquerda primitiva" quebra quando o seu "populismo" recusa as limitações físicas que constrangem a atividade econômica. Elas se impõem quando já é tarde demais e, então, a sociedade tem que purgar os malefícios do autoengano que sua própria ilusão ajudou a criar.

No primeiro ano do governo Temer o Brasil tomou conhecimento de tais dificuldades e, com a organização de um parlamentarismo de "ocasião", ele produziu a aprovação de um número substancial de medidas micro e macroeconômicas cujos efeitos se farão sentir no futuro. Infelizmente, os recentes eventos políticos diminuíram a capacidade do governo de prosseguir com as duas reformas fundamentais que estão encaminhadas: a trabalhista e a da previdência. É uma pena, porque elas terão de ser feitas para o aumento da produtividade do trabalho que deriva da aceitação que o aperfeiçoamento das relações trabalho-capital pode ser um jogo de soma positiva e que a solvabilidade futura do sistema de previdência e assistência social são parte constitutiva essencial da "sociedade civilizada" implícita na Constituição de 1988.

No que respeita à reforma trabalhista, o projeto é razoável. Ajusta o mercado de trabalho às mudanças estruturais recentes da própria atividade. Deve melhorar a empregabilidade em alguns setores. É pouco provável, entretanto, que acelere substancialmente emprego, mas acomodará melhor o equilíbrio do mercado de trabalho com a flexibilização do salário. Não se trata de um projeto "Hartz", aquele que ajudou a Alemanha (e que Macron quer introduzir na França), mesmo porque a organização do mercado de trabalho na Alemanha deixa o Estado de fora. É produto de contrato entre os seus participantes privados: sindicatos sérios, associações de empresários e conselhos de fábrica (que existem em empresas com mais de 5 empregados). É a transparência dos programas de produção e exportação de cada empresa, que combina os interesses do capital e do trabalho na distribuição "razoável" dos benefícios entre o lucro e o salário, que dão "racionalidade" e promovem a conciliação dos seus interesses. Quando inevitável, troca-se, conscientemente, menor salário por mais emprego. Numa certa medida, essa será, talvez, uma das consequências do nosso "aggiornamento" da legislação trabalhista à medida que tivermos "paridade de poder" na negociação salarial. Isso implicará sindicatos sérios sem monopólio espacial e sem imposto sindical e que não "negociem" os interesses de seus membros com o capital...

Quanto à reforma da Previdência, sua maior oposição vem do alto escalão do funcionalismo federal que se apropriou do poder em Brasília. Trata-se de uma "elite extrativista" que "conquistou" no grito direitos "mal" adquiridos, desde 1988, graças ao laxismo e covardia dos governos de plantão, ajudados pela inacreditável cegueira dos trabalhadores que aceitam alimentá-la. No caso da previdência, demografia é destino!

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Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4284, 27/06/2017. Brasil, p. A2.