Título: Lei Maria da Penha vale mesmo sem queixa
Autor: Caastro, Grasiella ; Abreu, Diego
Fonte: Correio Braziliense, 10/02/2012, Brasil, p. 9

Ministros do Supremo decidem que o agressor poderá ser denunciado pelo Ministério Público sem o consentimento da vítima. Antes, os processos eram arquivados quando a mulher desistia de punir o seu algoz

O Supremo Tribunal Federal (STF) definiu ontem que o Ministério Público pode apresentar denúncias contra agressores de mulher independentemente do consentimento da vítima. Por 10 votos a um, os ministros firmaram o entendimento de que os suspeitos de cometer lesões corporais leves serão processados com base na Lei Maria da Penha em ações penais públicas. Assim, fica estabelecido que a abertura de ação não mais depende da representação da vítima e, ainda, que os processos de agressões contra a mulher não podem ser julgados por juizados especiais.

Antes da decisão, bastava a vítima retirar a queixa para que o processo fosse arquivado. De acordo com números apresentados pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, em 90% dos casos a queixa era retirada. Em plenário, dois processos relativos à aplicação da Lei Maria da Penha foram julgados. Primeiro, uma ação na qual a União pedia o reconhecimento da constitucionalidade da lei no que se refere à diferenciação das mulheres em relação aos homens. Por unanimidade, o Supremo manteve a legislação aplicável estritamente em defesa da mulher. "Para frear a violência doméstica, não se revela desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação. A mulher é iminentemente vulnerável quando se trata de constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofrido em âmbito privado", destacou o relator do caso, ministro Marco Aurélio Mello.

A mais importante decisão de ontem, a que evita a impunibilidade dos agressores, foi tomada durante a análise de uma ação proposta pela Procuradoria-Geral da República. Para o órgão, a fixação de que a abertura da ação esteja condicionada à representação por parte da vítima fere o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e o "dever do Estado de coibir e prevenir a violência no âmbito das relações familiares".

Prevaleceu o voto de Marco Aurélio, que foi acompanhado por todos os demais ministros, com exceção do presidente do STF, Cezar Peluso. No mais emblemático dos votos, Cármen Lúcia fez uma ampla defesa do direito das mulheres e ressaltou que, onde houver mulher sofrendo violência, ela se sentirá "violentada". Ela acrescentou que até ministras do Supremo sofrem preconceito. "Alguém acha que uma ministra deste tribunal não sofre preconceito? Mentira. Sofre. Não sofre igual — outras sofrem mais que eu —, mas sofrem. Há os que acham que não é lugar de mulher", relatou Cármen Lúcia.

Para a ministra, a luta pela dignificação da mulher está longe de acabar. "Queremos ter companheiros, não queremos ter carrascos. Não queremos conviver com medo porque o medo é muito ruim. E o medo aniquila a tal ponto que gera a vergonha", afirmou. Já a ministra Rosa Weber considera a lei um marco histórico para o Brasil. Segundo ela, o país ainda vive em "uma sociedade machista e paternalista, onde as ações afirmativas em prol da mulher se fazem necessárias".

De acordo com a representante da Advocacia-Geral da União na sessão, Grace Mendonça, a cada 15 segundos, uma mulher é vítima de espancamento no país. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante, acrescentou que uma em cada seis mulheres sofre violência doméstica. Segundo ele, 331 mil processos foram distribuídos com base na Lei Maria da Penha, editada em 2006, com um total de 9,7 mil mandados de prisão em flagrante emitidos e 1,5 mil prisões preventivas decretadas.

Vitória Vítima de agressão, uma atendente de 28 anos que pediu para não ter o nome identificado comemora a decisão dos ministros. "Eu fui agredida, tive que voltar para casa e, quando ele soube que eu tinha feito a queixa, pediu para retirar. Isso é a coisa mais comum. O juiz determinou que ele fizesse tratamento psiquiátrico e eu achei pouco. Só quem passa pela situação entende", contou a moradora do Paranoá (DF). Parente de uma mulher que morreu devido a agressões domésticas, Fátima Mendes Moura, 49 anos, considera que as vítimas ficam iludidas com as promessas de mudanças feitas pelos agressores. "Eles têm o dom de enganar. Se a família não puder denunciar, a gente perde nossa única arma. Minha irmã foi maltratada várias vezes, cheguei a acompanhá-la na delegacia e ela sempre voltava para ele. Quando finalmente decidiu separar e conseguiu a medida protetiva, ele a atacou, se enfureceu", lembra.