O globo, n.30826 , 30/12/2017. ECONOMIA, p. 19

RIGOR CONTRA TRABALHO ESCRAVO

GERALDA DOCA

EDUARDO BRESCIANI

30/12/2017

 

 

Ministério corrige distorções após ter flexibilizado regras, o que gerou críticas no país e no exterior

Depois de quase três meses de polêmica, o governo recuou ontem e corrigiu um ato que flexibilizava o combate ao trabalho escravo no país. Foi editada uma portaria com novas regras de fiscalização. Na prática, ela revoga uma outra, publicada em outubro, que restringia a atuação dos fiscais do trabalho e limitava as condições análogas à escravidão, basicamente, ao cerceamento da liberdade de ir e vir. A flexibilização da norma era um pleito da bancada ruralista e de setores produtivos, como construção civil, e foi editada às vésperas do julgamento da segunda denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o presidente Michel Temer no Congresso. A nova portaria, publicada no Diário Oficial de ontem, detalha e amplia o conceito de trabalho escravo. Ele pode ser caracterizado por serviço forçado, jornada exaustiva, em condições degradantes e por cerceamento da liberdade. O trabalho forçado, por exemplo, pode ser caracterizado pela ameaça de punição física ou psicológica. O novo texto — negociado com Ministério Público e auditores fiscais do Trabalho — inclui itens que dizem respeito a direitos básicos dos trabalhadores, relacionados a segurança, saúde, descanso, convívio familiar e social, proteção, higiene e saúde no trabalho.

O texto editado em outubro foi alvo de críticas dentro e fora do país e estava suspenso por uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF). Ele condicionava a publicação da lista suja, que traz o nome dos empregadores que exploram mão de obra escrava, à autorização prévia do ministro do Trabalho, retirando essa competência da área técnica responsável. Agora, isso não será mais necessário. Também não será mais obrigatória a presença de policiais em todas as ações de fiscalização, nem a necessidade de lavrar boletim de ocorrência para o empregador ser autuado por trabalho análogo ao de escravo. Na nova portaria, policiais podem ser acionados para acompanhar fiscais para assegurar a integridade física deles. Outra novidade é a orientação aos fiscais em caso de estrangeiros encontrados em condição de trabalho escravo. Eles serão encaminhados a centros de assistência e vão ganhar o visto permanente. O texto incorpora procedimentos a serem adotados para todos os trabalhadores libertados, como o pagamento das verbas rescisórias, do seguro-desemprego e da inclusão no cadastro do Bolsa Família.

CONSTRUÇÃO CIVIL CRITICA MUDANÇA

A nova portaria foi publicada no mesmo dia da exoneração do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, que pediu demissão do cargo na tarde de quarta-feira para entrar na corrida eleitoral em 2018. Em outubro, Nogueira afirmou que o objetivo do texto era dar mais segurança jurídica e objetividade à atuação dos fiscais. Nogueira não quis deixar o governo com a pecha de “ministro do trabalho escravo”. Por isso, o texto saiu junto de sua exoneração.

Uma das maiores críticas à norma anterior vinha da Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, que pediu a revogação da portaria assim que ela foi publicada. A então secretária nacional de Cidadania do Ministério dos Direitos Humanos, Flávia Piovesan, também classificou a medida como “inconciliável com o Estado democrático de direito”. Segundo técnicos do governo, Dodge participou da negociação para costurar o novo texto e chegou a rejeitar uma primeira versão.

A portaria foi elogiada pelo Ministério Público do Trabalho, que também fez sugestões:

— A avaliação é muito positiva. Essa portaria soluciona os problemas que apontamos na anterior. Além da nova portaria seguir rigorosamente a conceituação do Código Penal, ela também delimita a interpretação sobre o que é jornada exaustiva e condição degradante. Isso retira a argumentação de que o conceito era muito aberto — disse o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury.

Setores beneficiados criticaram a nova regra. Segundo o presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic), José Carlos Martins, o texto ampliou novamente o poder dos fiscais:

— A nova portaria amplia demasiadamente os poderes dos fiscais, que na prática, têm demonstrado falta de bom senso e banalizado o trabalho escravo.

COMO ERA

CONCEITO:

A caracterização de trabalho análogo ao da escravidão estava condicionado ao cerceamento da liberdade de ir e vir

FLAGRANTE:

Para autuar os empregadores, era obrigatória a presença de policiais (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, policia militar e civil) em todas as ações de fiscalização. Também era obrigatório lavrar boletim de ocorrência no local

LISTA SUJA:

A inclusão de empregadores na lista suja deveria ter autorização expressa do ministro do Trabalho, assim como para publicação da lista suja

COMO FICA

CONCEITO:

Para ser considerado trabalho análogo ao de escravo, a nova portaria lista cerceamento da liberdade, jornada exaustiva, trabalho forçado e condições degradantes

FLAGRANTE:

Presença de policiais só para assegurar a integridade física dos fiscais. Não se exige mais boletim de ocorrência

LISTA SUJA:

O ministro não precisa mais autorizar a divulgação, que volta a ser de competência da secretaria de combate ao trabalho escravo