O globo, n.30814 , 18/12/2017. RIO, p. 6

DESCOMPASSO FISCAL

VERA ARAÚJO

18/12/2017

 

 

Em 57 municípios fluminenses, prefeituras gastaram mais de 48% do orçamento com pessoal

 

Em 2015, o estudante Júlio Cauã de Lima, então com 8 anos, quase repetiu o primeiro ano do ensino fundamental porque não sabia ler. A criança estudava num colégio próximo ao centro de Itaguaí, que fica a 70 quilômetros da capital do estado. Bastou ser transferido para uma escola rural, no mesmo município, em tempo integral, para surpreender os pais. Dois meses depois, o menino leu a sua primeira palavra: “lava-jato”, escrita numa placa de um posto de gasolina. Há cerca de um mês, no entanto, a secretária de Educação, Andreia Busatto, que é mulher do prefeito Carlo Busatto Júnior (PMDB), tentou fechar três escolas rurais, inclusive aquela onde Júlio estuda, a pretexto de enxugar despesas.

Mas enquanto corta sem cerimônia verbas para o social, nos gastos com pessoal a prefeitura de Itaguaí desrespeita a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Segundo levantamento do Laboratório de Análise de Orçamentos e de Políticas Públicas (Lopp), do Ministério Público do Rio (MP), o município ocupa a primeira posição no ranking dos 92 municípios do estado que mais têm despesas com o funcionalismo em relação à sua receita corrente líquida (soma de tributos, contribuições, ganhos com patrimônio e transferências). Além de Itaguaí, com índice de 86% quando o limite estabelecido pela LRF é de 54%, mais 18 municípios estão acima do recomendado, como Engenheiro Paulo de Frontin (61%), Itaboraí e Varre-Sai (ambos com 59%), tomando por base o período de julho de 2016 a agosto de 2017.

Aos olhos da LRF, o MP analisou 80 municípios, porque os outros 12 não encaminharam informações. Desses, 57 estão com suas ações limitadas, comprometendo pelo menos 48,6% da receita corrente líquida. Dezessete deles atingiram o patamar de alerta. Mas os desmandos fiscais bateram na porta da metade dos investigados, ou seja, de 40 municípios. Desses, 21 alcançaram o limite prudencial (51,3% da receita corrente líquida) de despesas com pessoal, inclusive o Rio (53,41%). Ao ultrapassar o teto da LRF, porém, como aconteceu com 19 cidades, as sanções podem significar cortes na própria carne, explica o professor de Direito Administrativo Manoel Peixinho:

— O gestor sofre uma tomada de contas especial do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Havendo rejeição das contas, a LRF prevê cortes de pessoal, começando pelos comissionados. O município também não pode contratar nem abrir concursos. Caso as duas medidas não sejam suficientes, o prefeito deve demitir concursados. As contas rejeitadas pelo tribunal são submetidas à Câmara de Vereadores. Caso a Câmara confirme a rejeição, o prefeito fica inelegível.

Itaguaí tem 6.629 servidores, sendo 738 comissionados. Com eles, em um ano foram gastos R$ 362,8 milhões, de uma receita de R$ 417 milhões, sobrando pouco para investimentos. Já as três escolas rurais do município custam R$ 189 mil por mês, sendo que a prefeitura banca só R$ 70 mil. Numa inversão de prioridades, com a manutenção dessas unidades o município gasta quatro vezes menos do que com os salários dos 16 secretários (R$ 320 mil). Cada um recebe R$ 20 mil, conforme decreto assinado pelo prefeito após sua posse, concedendo aumento de 33%.

CALAMIDADE APÓS ARRECADAÇÃO GORDA

O mesmo município também figura como uma das 24 cidades que decretou estado de calamidade financeira em 2016 e 2017. Na análise do orçamento dessas prefeituras, o Lopp, criado em junho para analisar até onde vai a “irresponsabilidade” de gestores, verificou que cinco delas tiveram excesso de arrecadação em 2015. Seropédica é uma delas, com valor mais expressivo: 17,2%. Os demais são Petrópolis, Pinheiral, Sapucaia e Valença.

— Muitas vezes o estado de calamidade era maquiado, forjado mesmo. Tentaram usar essa situação para lesar os cofres públicos, aproveitando-se dos benefícios legais para fazer compras emergenciais sem licitação — diz a coordenadora do laboratório, procuradora Márcia Maria Tamburini. — O MP já entrou com algumas representações de inconstitucionalidade contra os gestores responsáveis pelos decretos.

O discurso de austeridade do atual prefeito de Itaguaí, conhecido como Charlinho, veio por terra quase um ano depois de ter tomado posse, após seu decreto de calamidade financeira ter sido declarado, liminarmente, inconstitucional. Charlinho administra a cidade pela terceira vez (foi prefeito entre 2005 e 2012). Em 2016, ele foi condenado a 14 anos de prisão pelos crimes de fraude em licitação, corrupção passiva e organização criminosa, mas o caso ainda está em fase de recurso. Já a notícia de que as escolas rurais seriam fechadas mobilizou pais de alunos das unidades, onde há 156 crianças matriculadas, que foram às ruas protestar. Adriana Lima, mãe de Júlio, se juntou ao grupo: — Fomos pegos de surpresa. A promotora Daniela Caravana, da Promotoria de Tutela Coletiva da Educação de Nova Iguaçu, responsável também por Itaguaí, recomendou, no fim de novembro, que fossem suspensos os efeitos das resoluções assinadas pela secretária de Educação sobre o caso, até que a comunidade fosse ouvida, em respeito ao princípio da gestão democrática da educação, prevista por lei. Segundo ela, o currículo da escolas rurais é diferenciado e, no caso das três unidades, elas são as únicas do gênero na região:

— Estamos propondo um Termo de Ajustamento de Conduta para que a secretaria se comprometa a ouvir a comunidade escolar.

No último dia 11, após pressão dos pais, a resolução de fechamento das escolas foi suspensa pela Secretaria de Educação de Itaguaí, sem dar detalhes. Segundo Daniela, não está descartada a possibilidade de a medida ser reeditada, com a utilização de outros argumentos.

SAÚDE: FALTAM ATÉ MATERIAIS BÁSICOS

Na saúde, Itaguaí — com 109.091 habitantes e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,715, ocupando o 35º lugar entre os 92 municípios — também apresenta sérios problemas. Na principal unidade, o Hospital Municipal São Francisco Xavier, faltam materiais básicos como seringas e compressas, além de antibióticos e equipamentos para exames. Sem condições de realizar radiografias, os pacientes acabam passando mais tempo na unidade aguardando por ambulâncias. Segundo funcionários do hospital, há apenas duas circulando pela cidade. No refeitório, além das infiltrações, o teto desabou parcialmente.

— Falta tudo, até material de limpeza. O meu marido está há um mês aguardando uma ambulância para levá-lo até o Hospital da Lagoa, no Rio, onde fará uma tomografia na cabeça — lamentou Teresa do Nascimento Silva, acompanhante do marido, Pedro da Silva, de 87 anos.

Em Chaperó, na área rural de Itaguaí, a unidade básica de saúde, que deveria funcionar 24 horas, desde junho encerra o expediente às 17h. Nas prateleiras do almoxarifado, há escaninhos vazios: falta de paracetamol (analgésico) à amoxicilina (antibiótico). Dentistas passam parte do tempo de braços cruzados, pois não há anestesia. E o esterilizador está com defeito.

Por e-mail, Itaguaí informou que “não comenta ranking dos municípios, já que ele não consta no site do Ministério Público estadual”. Segundo a assessoria de Charlinho, a folha de pagamento, em 2016, estava acima de R$ 26,4 milhões, mas a atual administração a reduziu para R$ 21,8 milhões. Disse ainda que o atraso nos salários do ano passado se deve à administração passada. Com relação à falta de medicamentos, disse que é “pontual”.

Macaé e Caxias, que figuram entre as cidades que mais receberam royalties em 2015, também aparecem no ranking das que mais gastam em pessoal, ocupando, respectivamente, a nona e a décima-quarta posições. Em Macaé, o MP conseguiu anular a contratação, sem concurso público, de 1.300 temporários. Lá os problemas são de infraestrutura, como falta de pavimentação de vias. Em Caxias, os conselhos tutelares não têm condições de fazer atendimentos: falta do papel ao combustível para o único veículo disponível. A Promotoria de Tutela da Infância ajuizou ação contra a prefeitura, que priorizou a construção de um cemitério.