O globo, n.30814 , 18/12/2017. ECONOMIA, p. 17

USINA NUCLEAR À DERIVA

VINICIUS SASSINE

18/12/2017

 

 

Á espera de sócio privado, Angra 3 acumula dívidas, contratos abandonados e 'trincas' em equipamentos

A usina nuclear Angra 3 tem canteiros de obras cada vez mais vazios, uma progressão de contratos abandonados antes da conclusão, dívidas com fornecedores superiores ao que se tinha conhecimento até agora e "diversas trincas" em equipamentos fabricados para o empreendimento. Para tratar dessas falhas, foi criada uma força-tarefa para inspecionar o material importado. Mas até mesmo a iniciativa de ampliar a fiscalização corre risco de ser abandonada em razão das dificuldades financeiras e de pessoal para tocar Angra 3. O diagnóstico inédito da usina, uma obra à deriva e paralisada desde outubro de 2015, está registrado em relatórios mensais de acompanhamento do empreendimento, de janeiro a outubro de 2017, obtidos pelo GLOBO por meio da Lei de Acesso à Informação. Os documentos são elaborados pela Diretoria Técnica da Eletronuclear, estatal responsável pela usina, um projeto investigado na Operação Lava-Jato. Os relatórios são considerados pela empresa como de acesso restrito, "por questões estratégicas e comerciais", mas não sigilosos. Com a interrupção das obras há mais de dois anos, as atividades em Angra 3 se resumem à conservação do que já foi edificado e à preservação de equipamentos. Os relatórios internos apontam gastos de R$ 6,5 bilhões no projeto — o Tribunal de Contas da União (TCU) vê gastos de R$ 8 bilhões até o momento. O orçamento total da usina, que tem execução de 50,6% de equipamentos e materiais, 14,7% de montagem eletromecânica e 11,2% de construção civil, é de R$ 20,3 bilhões. Se encontrar parceiros internacionais para aportar dinheiro na usina, Angra 3 começaria a gerar energia somente em 2024, M anos depois do ato de outorga de 13 de julho de 1970 e 40 anos após o início das obras. O relatório de acompanhamento do empreendimento referente a outubro registra que inspeções detectaram "diversos problemas com relação aos volumes fabricados pela empresa Nirotec, tanto relacionados à documentação quanto às peças propriamente ditas, nas quais foram identificadas diversas trincas': Segundo o documento interno, a Areva — responsável pela fabricação de geradores elétricos da central termelétrica— fez contato com a Nirotec para "iniciar as ações e testes para analisar os casos". "A pedido da Areva, sete peças foram enviadas para a Alemanha para testes em laboratórios, identificação da causa raiz dos problemas e encaminhamento de solução, dentro da garantia.”

FALTA DE RECURSOS PODE AFETAR FORÇA-TAREFA

A Areva tomou iniciativas para investigar as causas das trincas, que podem estar associadas a problemas na fabricação ou a falhas no sistema de controle de qualidade, segundo o relatório de outubro. A descoberta do problema levou a Eletronuclear a montar uma força-tarefa para "acelerar as inspeções de recebimento nos volumes importados'; com previsão de 120 volumes inspecionados por mês, por três meses, a partir de dezembro. A estatal, porém, enxerga riscos na continuidade desta iniciativa: "Ressalta-se que as dificuldades financeiras e de pessoal pelas quais passa a empresa no momento podem colocar essa estratégia paliativa em risco". A presença de trabalhadores nos canteiros de obras, responsáveis por manutenção, caiu 37,5% de janeiro a outubro. No começo do ano, eram 229 de oito empresas. O número caiu a 143 contratados de quatro companhias. Duas empresas foram contratadas para fazer serviços de manutenção de equipamentos e edificações, como instalação de tenda para cobrir o edifício do reator e inspecionar o recebimento de equipamentos. Os contratos somam R$ 14,3 milhões. Os documentos mostram que dez contratos no valor de R$ 926 milhões foram encerrados, suspensos ou anulados nos últimos cinco meses, alguns com execução inferior a 15%. São contratos com empresas responsáveis, por exemplo, pela fiscalização de serviços de montagem eletromecânica e de obras civis. "Atendendo demanda do Conselho de Administração, a Eletronuclear está providenciando a contratação de uma auditoria complementar, independente, para verificação de eventuais irregularidades nos processos de contratação e execução dos serviços com as empresas AF Consult, Engevix, Ductor, Concremat e Arcadis Logos',' cita o relatório de outubro.

Os contratos interrompidos com esses empreendimentos somam R$ 681,2 milhões. A paralisação das obras de Angra 3 ocorreu três meses depois da prisão do então presidente da Eletronuclear, Othon Pinheiro da Silva, numa das fases da Operação Lava-Jato. Ele já foi condenado em primeira instância pela Justiça Federal a 43 anos de prisão por crimes de corrupção, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e organização criminosa. O almirante da Marinha está em prisão domiciliar. Cartéis de empreiteiras que fatiaram contratos de obras bilionárias da Petrobras fizeram o mesmo com contratos de Angra 3, o que colocou o empreendimento na mira da Lava-Jato. O TCU recomendou pelo segundo ano consecutivo a paralisação de obras da usina, em razão de graves irregularidades detectadas no empreendimento. A recomendação integra o relatório consolidado sobre fiscalizações de obras (Fiscobras) de 2017, procedimento anual que inclui diversas auditorias e que é submetido à deliberação da Comissão Mista de Orçamento do Congresso. O Parlamento concordou com o TCU e incluiu o bloqueio de repasses na proposta orçamentária para 2018. Em março, o tribunal declarou a inidoneidade de quatro empresas — Queiroz Galvão, Empresa Brasileira de Engenharia, Techint e UM — por fraudes em licitações de Angra 3. Para outras três empreiteiras — Camargo Corrêa, Odebrecht e Andrade Gutierrez —, o TCU "sobrestou" (suspendeu) a punição, em razão de acordos de leniência com o Ministério Público Federal (MPF). Um único processo aponta superfaturamento de R$ 1,2 bilhão em contratos. Em meio a essas incontáveis contestações sobre a regularidade das licitações e repasses às empresas contratadas, Angra 3 acumula dívidas com seus fornecedores nacionais. O último relatório mensal obtido pelo GLOBO, de outubro, revela um valor superior ao que seus gestores costumam dizer publicamente. Há mais de 90 dias, a Eletronuclear não paga R$ 220,7 milhões a fornecedores nacionais. Do total, R$ 179,3 milhões são pagamentos em aberto em "estado contencioso': ou seja, com contestação judicial, disputa ou conflito de interesses. Angra 3 tem dívidas com a Prefeitura de Paraty, referente a um convênio, de R$ 16,3 milhões. Empreiteiras investigadas na Lava-Jato são credoras, mas, neste caso, em "estado contencioso': Estão em aberto pagamentos de R$ 35 milhões à Andrade Gutierrez, de R$ 12,1 milhões à Engevix e de R$ 65,8 milhões ao consórcio Angramon, formado pelas principais empreiteiras investigadas na operação.

EMPRESAS DE FRANÇA, RÚSSIA E CHINA NA MIRA

O relatório de outubro mostra um avanço na busca por parceiros internacionais, estratégia considerada a única possível para a retomada das obras da usina. A francesa EDF, atual proprietária da Areva, assinou um termo de confidencialidade com a Eletrobras, a Eletronuclear e a japonesa Mitsubishi Heavy Metals, com quem busca eventual financiamento. Antes, a mesma EDF havia informado que, em razão de investimentos em outras usinas nucleares, não tinha interesse em ser sócia de Angra 3. Já a estatal chinesa CNNC é tida como "um dos parceiros mais promissores',' com a formalização de um memorando de entendimento. Memorando semelhante "está pronto para assinatura" com a russa Rosatom. "Em outubro de 2017 a Rosatom enviou uma proposta de parceria para início de discussão',' cita o documento interno. Em outubro, a Eletronuclear assinou dois contratos, um com a consultoria Alvarez & Marsal e outro com o escritório de advocacia Veirano, com o propósito de estruturar as condições para as parcerias internacionais. A privatização da Eletrobras não incluirá a Eletronuclear, por vedação constitucional. O projeto de lei que detalha a venda da Eletrobras prevê a criação de uma estatal para controlar a Eletronuclear e a hidrelétrica de Itaipu, como revelou O GLOBO em 22 de novembro. A eventual entrada de um parceiro internacional deverá garantir que a Eletronuclear seja majoritária, de forma que não haja "contestação de constitucionalidade',' como consta no relatório de acompanhamento do empreendimento. "A Eletronuclear é delegada pela União para operação e manutenção de usinas nucleares no Brasil. A situação atual do empreendimento aponta altos valores a serem ainda investidos que não têm origem ou financiamento definido ou assegurados,' diz. Na tarde da última quinta-feira, O GLOBO enviou sete perguntas à assessoria de imprensa da Eletronuclear, relacionadas ao conteúdo dos relatórios de acompanhamento do empreendimento. Na noite de sexta, a assessoria informou que não haveria respostas aos questionamentos.

O globo, n.30814 , 18/12/2017. ECONOMIA, p. 17