Título: Revolução inacabada
Autor: Tranches, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 10/02/2012, Mundo, p. 18

Um ano após a queda do ditador Hosni Mubarak, a população do país assiste a transformações lentas e tenta remover os militares do governo. Em meio à insatisfação, islamitas buscam consolidar o poder

A cabeça foi retirada, mas a espinha dorsal continua lá. A analogia feita pelo embaixador Cesário Melantonio Neto, uma das maiores autoridades em mundo árabe do governo brasileiro, resume o atual cenário no Egito. Um ano após a queda do presidente Hosni Mubarak, o país ainda enfrenta um longo caminho na busca de um governo civil e na remoção dos tentáculos do antigo regime militar, atracados a todas as instâncias de poder. O lento processo de transição se transformou em uma queda de braço entre militares e civis. Entre eles, líderes e partidos banidos até recentemente da política tentam encontrar seu lugar. Endossados nas primeiras eleições livres pela maioria dos egípcios, os islamitas enfrentam no Parlamento o desafio de atender às demandas das ruas e manter a paz com os militares, em uma revolução que deu apenas seu primeiro passo.

Quando milhares de egípcios tomaram a Praça de Tahrir, no Cairo, em 11 de fevereiro de 2011, para celebrar a queda do ditador (leia a cronologia), elas não poderiam imaginar que voltariam tantas vezes ao mesmo local, símbolo da revolução no país. O Egito foi a segunda nação alcançada pela onda de revoltas conhecida como Primavera Árabe.

Inspirado pelos tunisianos, o povo egípcio tomou as ruas do país para demonstrar insatisfação com o governo de Mubarak, a quem acusavam de corrupto. Mas as transformações na antiga terra dos faraós se sucedem a passos lentos, especialmente se comparadas com a vizinha Tunísia, que já elabora sua Constituição e se prepara para as eleições presidenciais. A grande diferença está no comando do processo tunisiano, que ocorre sob a tutela de um governo transitório civil.

No Egito, apesar da formação de um gabinete, as decisões continuam sendo tomadas pelo Conselho Supremo das Forças Armadas (Scaf, por sua sigla em inglês). Ontem, a Irmandade Muçulmana pediu a destituição desse gabinete, ao alegar inabilidade em lidar com a segurança e a economia.

A situação criou uma tensão no Egito, suscetível a explosões a cada recrudescimento entre militares e civis. Beneficiados por antigos privilégios e donos de milionários negócios, incluindo complexos industriais, os militares seguem aferrados ao poder, como explicou Melantonio, embaixador brasileiro no Egito até dezembro e atual enviado especial do Brasil para o Oriente Médio. Parlamento e militares travam uma disputa sobre como será a condução da Assembleia Constituinte. Os militares querem escolher a maioria dos parlamentares constituintes e assegurar que o controle sobre seu orçamento continue com eles, algo inaceitável para os novos legisladores. "Os egípcios querem uma democracia plena enquanto os militares querem uma democracia tutelada, uma meia democracia", opinou Melantonio, em entrevista ao Correio.

Incapacidade Tal comportamento, que o cientista político Walid Kazziha, da American University do Cairo, classifica como uma "mentalidade defensiva", seria uma tentativa da junta de "manter sua independência econômica e administrativa das instituições legítimas do futuro Estado". Para Kazziha, esse primeiro ano provou a incapacidade do Scaf em administrar a economia ou qualquer outro aspecto da vida de uma sociedade civil. "Também se mostrou politicamente inexperiente, o que criou divisões", disse à reportagem.

Nesse contexto, os islamitas, especialmente a Irmandade Muçulmana, representada no Parlamento pelo Partido Liberdade e Justiça, tentam adquirir mais poder, por meio do controle do Legislativo. Ao mesmo tempo, como explica Kazziha, procuram manter a paz com o Scaf, dando garantias de que a junta continua no comando, na esperança de neutralizá-la em julho, após as eleições presidenciais. "A longo prazo, eles (islamitas) provavelmente sentem que poderão triunfar sobre os militares", declarou. Por outro lado, os mesmos políticos precisam manter-se alinhados com os liberais e as forças mais radicais dos movimentos jovens, o que tem se provado algo muito difícil, segundo o analista.

Um ano depois, a insatisfação é evidente e pressiona os militares a deixarem o poder. Na tentativa de aplacar o descontentamento, o Scaf responde com medidas contra membros do antigo regime, como o julgamento do próprio Mubarak. "Mas o ressentimento chegou a um ponto que tais medidas não serão suficientes", ponderou Kazziha. Para marcar o primeiro ano sem Mubarak, ativistas convocaram um movimento em massa para amanhã, dando provas de que a revolução egípcia continua viva e inacabada.