Para Arminio, saída de Temer não deve atrasar retomada econômica

Claudia Safatle

12/07/2017

 

 

Para Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central, a eventual saída de Michel Temer da Presidência da República não vai atrasar a recuperação da economia, cujo ritmo está sendo ditado pelo processo sucessório de 2018 e suas incertezas. "O econômico, agora, não é tão importante", disse ele. "O mais importante é que as instituições funcionem" e resolvam a crise política e moral sem apelar para a economia. "Se houver perda de credibilidade nas instituições, porque elas estão agindo de forma errática, será mais grave", salientou. Na sua opinião, a situação de Temer deteriorou-se bastante após a divulgação da gravação e da delação de Joesley Batista, da JBS. Em entrevista ao Valor, ontem, Arminio lançou ao debate a ideia de ampla privatização das empresas estatais, inclusive da Petrobras e do Banco de Brasil, velhas joias da coroa tratadas como tabus quando o assunto é privatização. "Se não estava claro até o caso da Petrobras, agora não pode haver mais dúvida de que esse modelo de estatal é muito vulnerável, cheio de problemas e precisa ser repensado. Eu não vejo, sinceramente, justificativa para se ter empresa estatal. Nenhuma", disse ele, referindo-se ao propinoduto instalado na Petrobras e desvendado pela Operação Lava-Jato.

Se Temer for substituído pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), como desfecho do processo que corre no Congresso e no Judiciário, Armínio defende a permanência da equipe econômica liderada por Henrique Meirelles durante esse período. "Isso seria o ideal", disse. Quanto à possibilidade de vir a ocupar o cargo de Ministro da Fazenda em alguma administração futura, ele responde que já esteve por duas vezes no governo e não tem intenção de voltar. "Muito menos" de vir a ser um eventual candidato à Presidência da República, como um dia sugeriu Larry Summers, economista e ex-secretário do Tesouro americano. A seguir, a íntegra da entrevista:

Valor: Dada a fragilidade do governo e o adiamento das reformas, hoje o presidente Temer mais ajuda ou atrapalha a recuperação da economia?

Arminio Fraga: O que mais atrapalha a recuperação nesse momento provavelmente ainda é 2018 [ano de eleições presidenciais]. E isso é em função de uma percepção de que hoje existe uma condução das coisas econômicas de boa qualidade, com uma boa agenda que se atrasar, ou adiantar um pouco, não faz tanta diferença, desde que lá na frente o país não descambe para algum tipo de populismo que fatalmente, com a economia tão fragilizada, seria trágico. Com relação ao presidente e às questões que estão nas manchetes todos os dias, a partir da gravação [e delação feita por Joesley Batista, da JBS], e os muitos ruídos vindos do entorno dele, a minha leitura é que importa mais o processo do que o resultado.

Valor: Como?

Arminio: Quando se olha a decisão do TSE [Tribunal Superior Eleitoral, que julgou e não cassou a chapa Dilma/Temer], com a justificativa de natureza econômica, vejo com grande preocupação. Não há nada mais importante nesse momento do que reconstruir, além da economia, a nossa democracia, o nosso sistema político. Eu sou dos que acreditam que ambos têm origens comuns, mas nesse momento domina a questão política. Cito nesses últimos dias um certo amadurecimento do mercado, se quiser chamar do PIB, com relação a esses assuntos.

"Havia certa tolerância da opinião pública até a gravação. (..) A situação se deteriorou muito para o presidente"

Valor: O sr. se refere à saída de Temer e a condução da sucessão sendo feita pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia?

Arminio: A sucessão, do processo, das incertezas naturais que estamos vivendo com o envolvimento de tantos atores, inclusive um número importante deles no poder, ou nas cercanias do poder, ou recém-saídos do poder. O número é significativo, tanto do ministério quanto das assessorias e tudo o mais. O fato é que havia uma certa tolerância da parte da opinião pública até o momento da famosa gravação. De lá para cá as coisas mudaram, os problemas só fazem aumentar, o número de pessoas envolvidas só vem crescendo e a impressão é que isso vai continuar.

Valor: A situação é insustentável?

Arminio: Sem querer personalizar, acho que infelizmente a situação para o presidente se deteriorou muito. Já se sabia que ele era pessoa do círculo mais intimo do poder desde o primeiro mandato da presidente Dilma, como vice-presidente e parceiro preferencial do PT. Ele teve uma atuação importante, positiva, de pular fora e apresentar um programa e merece crédito por isso. Mas o fato é que ele trazia essa outra bagagem, que agora se apresentou de uma forma bastante dramática.

Valor: E as supostas consequências para a economia?

Arminio: O importante, a meu ver, é que essas questões que passam pelo Judiciário e pelo Congresso se resolvam dentro de um certo processo e que não apele para o econômico. O econômico, agora, não é tão importante. O mais importante é que as instituições funcionem. Se houver perda de credibilidade nas instituições porque elas estão agindo de forma errática, será mais grave.

Valor: Mesmo que isso atrase a recuperação?

Arminio: Não acho que isso atrasa a recuperação, esse é que é o ponto. A recuperação vai ter seu ritmo ditado pelo momento culminante que serão as eleições de 2018. Nesse meio tempo, é melhor para o Brasil a longo prazo, para o Brasil que a maioria das pessoas gostaria de construir, que toda essa grande crise política e moral se resolva e seja processada. Uma enorme dificuldade com relação a isso é que muitos dos envolvidos, especialmente no Legislativo, estão diretamente ameaçados e vários já investigados, condenados e defenestrados. Essa operação é muito difícil, mas ela tem que continuar e desembocar em um final minimamente feliz.

Valor: Fala-se, atualmente, que a economia está se descolando da política? Isso é possível?

Arminio: Hoje, elas já estão totalmente imbricadas e não é possível que isso aconteça. Eu acredito que os problemas de ambas têm a ver com esse modelo político/econômico e isso tudo com um caldo de problemas éticos espalhados por toda parte. A solução terá que vir nas duas frentes, mas a que hoje existe, está em andamento e é mais forte, é a política. A econômica está aí, existe uma agenda já bastante antiga, que vem até surpreendentemente sendo tocada. E nada garante que uma mudança feita de maneira objetiva em parte dessa questão maior da política vá atrapalhar a economia. Não creio que seja esse o caso.

Valor: Alguém já disse que a economia é a rainha das ciências sociais desde que a política esteja bem equacionada.

Arminio: É verdade. Mas tem muitos sistemas que funcionaram enquanto a economia também estava indo bem, e um dos exemplos temos aqui. O regime militar acabou quando perdeu a capacidade de manter a economia crescendo. E foi um final relativamente tranquilo, sem prejuízo da economia ter se esborrachado e o Brasil ter levado anos para se recuperar. Podemos estar diante de situação semelhante na Rússia, na China, que são sistemas autoritários, mas em democracias seria a mesma coisa, alternância entre liberais e social-democratas, conservadores e esquerda. Mas com o nosso caso, onde o regime político explodiu e está todo mundo correndo de um lado para o outro querendo se safar, fica mais complicado. A única esperança que tenho é que esse processo, iluminado pela liberdade de imprensa, de opinião, de debate, vá aos poucos chegar em algo melhor. Difícil dizer em quanto tempo. Mas em nome de uma reforma ou outra eu não prejudicaria o andamento institucional que há hoje no Brasil. Pode até ser imperfeito, como todos nós, mas está funcionando bem e precisa, a meu ver, continuar.

Valor: Quais seriam as consequências de deixar as reformas para 2019?

Arminio: As consequências são que o país vai acumular mais dívida e, no que diz respeito a uma agenda mais micro, voltada para o aumento da produtividade, vai continuar muito aquém do seu potencial. É o que é. Agora, não tenho essa certeza toda de que a agenda de reformas vai parar. Não é nada impossível que o Congresso, sentindo as dores da população, aprove a idade mínima para a aposentadoria e a reforma trabalhista. O Ministério da Fazenda fala em dar um passo na reforma tributária começando pelo PIS. Eu não jogaria a toalha na aprovação de algumas dessas questões. Elas são parte da resposta que os nossos representantes devem à sociedade.

Valor: E se não for adiante?

Arminio: Se não for, isso vai ficar claro. O que não dá é para ficar tentando aprovar segundo o modelo de um Brasil velho, negociando um cargo aqui, um negócio ali. Sei que a política tem muito disso, mas passou do ponto. Chegamos a um ponto tal na economia e na própria política em que algumas dessas questões terão que ser discutidas em um contexto de crise e, portanto, em um quadro maior de valores, e não aprovadas na base da negociação de um modelo que faliu.

Valor: Nesse sentido a reforma política não deveria encabeçar a lista de prioridades?

Arminio: Sim, com certeza. Essa é mais difícil, porque toca em temas delicados em um país movido ainda, predominantemente, dentro de um modelo velho. Mas seria desejável e o primeiro item da lista. Me parece que há algum consenso para abordar a cláusula de barreira e as coligações nas eleições proporcionais. Já seria um belo de um avanço.

Valor: Novos partidos continuam sendo criados.

Arminio: É. Teria que mexer no fundo partidário e no tempo de televisão, que viraram um meio de vida para esse Brasil velho que está estrebuchando.

"O PSDB se perdeu no meio do caminho. O ideal teria sido apoiar reformas, mas não fazendo parte do governo"

Valor: O governo Temer, se encerrar agora, avançou e deixa algum bom legado?

Arminio: Avançou em algumas questões importantes. No núcleo da área econômica avançou bastante mas agora está ameaçado de retrocesso, por exemplo, no caso do BNDES, que a meu ver tinha um projeto muito bom, que começou com a definição de critérios, algo que fazia falta há muito tempo para um banco público que usa dinheiro do contribuinte. E mais recentemente com a proposta de criação da TLP [Taxa de Longo Prazo, que vai substituir a TJLP nos financiamentos do BNDES]. No geral, na área econômica, diria que as coisas andaram surpreendentemente bem. Houve um certo alívio com a saída da presidente Dilma que rapidamente explodiu o país e, se tivesse ficado mais um tempo, iria explodir ainda mais. E as coisas andaram bem à frente da inflação, o BC se posicionando com mais apoio do resto do governo também. Nos outros setores não tenho uma visão completa, mas vejo com bons olhos as mudanças na área da energia, da educação e das cidades. No meio da confusão toda, isso as vezes passa despercebido. Não diria que o governo nesse sentido merece avaliação ruim. Mas no quadro geral da política já vem de muito tempo, está aparecendo agora e precisa ser resolvido.

Valor: Não está no gigantismo do Estado brasileiro o convite à corrupção?

Arminio: Com certeza. Mas o gigantismo do Estado não surgiu do nada. A atribuição de culpa ou de causa não é trivial. O Estado é grande porque opera em parceria com o setor privado, porque na Constituição se espalhou direitos para todos os lados sem pensar nas contas, porque trouxe um componente ideológico a partir do governo do PT. E tudo se casou com lideranças empresariais que jogaram o jogo. É preciso fazer uma reforma que tire da mesa esse balcão de subsídios, desonerações, proteções, contratos e, assim, diminua o espaço da corrupção.

Valor: A saída seria reduzir o tamanho do Estado?

Arminio: Se o Estado vai ser menor é outra discussão fascinante. Uma parte do Estado gigante é a nossa Previdência, que é de fato enorme para as nossas caracteristicas demográficas e isso está em discussão há muito tempo. O papel do Estado nas áreas da saúde, educação, infraestrutura também, precisa ser repensado. Não sou defensor de um Estado minimalista, não. Acho que precisamos ter um Estado menor. Outro item que está no ar são as empresas estatais em geral. Se não estava claro até o caso da Petrobras, agora não pode haver mais dúvida de que esse modelo de estatal é muito vulnerável, cheio de problemas e precisa ser repensado. Eu não vejo, sinceramente, justificativa para se ter empresa estatal. Nenhuma.

Valor: Nem os xodós como a própria Petrobras e o Banco do Brasil?

Arminio: Não. Nenhuma, nenhuma. Não faz o menor sentido. Isso não quer dizer que o Estado não possa ser um enorme provedor nas áreas da saúde e da educação e que possa participar incentivando as coisas que sejam genuinamente públicas, nas áreas de infraestrutura e distributiva também. Agora, no geral, o modelo de empresa não combina. O Estado pode contratar empresas de forma transparente e competitiva. O Estado ter empresas, para nós, tem sido um problema. Quantas vezes os bancos públicos federais já tiveram problemas. Os bancos estaduais quebraram tantas vezes. O Banco do Brasil quebrou e teve que ser capitalizado, a Caixa também. O Banco do Brasil tem potencial para ser uma corporação privada.

Valor: A Petrobras deveria ser privatizada?

Arminio: Poderia ser perfeitamente privatizada. Não a venderia nunca para um oligarca de uma nação pouco democrática ou para um fundo soberano de outra. Isso jamais faria. Mas teria um setor competitivo, regulado se necessário, e fora da tentação que tem sido ao longo dos anos. É difícil entender como pode ter acontecido aquilo tudo lá dentro da forma que aconteceu [referência ao propinoduto criado na Petrobras e desvendado pela Lava-Jato].

Valor: A lei das estatais representou algum progresso?

Arminio: A lei é bastante boa. Mas um item não foi aprovado, que era a revogação do artigo 238 da Lei das S/A, que supostamente dá alguma justificativa para que empresas tenham objetivos não econômicos [Art. 238. A pessoa jurídica que controla a companhia de economia mista tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador (...), mas poderá orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua criação]. Acho que é uma contradição fatal. Qualquer governo mais racional e mais isento de ideologias e pressões políticas sabe que o fato de uma empresa ter que trabalhar como empresa não significa que o governo não possa contratar serviços. Acompanhei de perto esse processo e sai frustrado, apesar de achar que a lei das estatais foi um grande avanço. Esse brinquedo com esses interesses todos expostos desapareceria. É um brinquedo caro, injusto, regressivo.

Valor: Gostaria de lhe perguntar quais podem ser, na sua avaliação, os candidatos potenciais para 2018, além de Lula e Bolsonaro, que são os mais citados nas pesquisas?

Arminio: Acho que está cedo. Os partidos chamados de centro, centro-esquerda, centro-direita, vão ter que se organizar e se posicionar e não estão fazendo isso. Vão ter que ter um pouco de humildade, sabem que estão expostos. O PSDB não está se posicionando outra vez. Perdeu a chance lá atrás, no mensalão. Fez essa parceria, embora mais bem administrada, com parte do Brasil velho por falta de alternativas, na época era o argumento.

Valor: E está novamente em um impasse...

Arminio: Desde sempre. Se o país tivesse hoje um PSDB como aquele de quando o partido nasceu, seria barbada ganhar as eleições. Mas o PSDB se perdeu no meio do caminho. Não sou filiado, pra deixar claro. Para mim o ideal teria sido ver o PSDB apoiando as boas reformas, mas não fazendo parte do governo. Pessoas ligadas ao partido até poderiam participar, em caráter pessoal. Mas na medida em que a história [da delação da JBS] foi aparecendo, o partido teria que ter se posicionado. Até agora não fez e vai fazer tarde. As coisas têm um certo momento, também.

Valor: Haveria a necessidade de novo programa econômico para 2019?

Arminio: O Brasil entrou em um buraco fiscal sem tamanho a partir de 2014, que vai ter que ser revertido. As agendas da produtividade, da igualdade de oportunidade, da oportunidade pura e simples, são agendas bem conhecidas e há um mundo de coisas a fazer, uma vez superada a crise política. Mas os riscos aumentaram muito. O país está muito endividado, vários Estados estão em situação ainda pior. É um enorme desafio. Mesmo com o teto e a reforma da Previdência, tudo indica que a dívida vai lá para cima. Passa de 90% nos próximos quatro a cinco anos.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4295, 12/07/2017. Especial, p. A14.