O globo, n.30825 , 29/12/2017. PAÍS, p. 3

‘NÃO PODE VIRAR IMPUNIDADE’

CAROLINA BRÍGIDO

29/12/2017

 

 

Cármen suspende parte do decreto de Temer; Moro elogia: ‘ Governo pode muito, mas não tudo’

 A presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, concedeu ontem liminar para suspender os trechos do decreto do presidente Michel Temer com regras mais brandas para a concessão do indulto ( perdão) de Natal a presos condenados. A decisão acolhe recurso contra o decreto apresentado pela procuradora- geral da República, Raquel Dodge, na quarta- feira. Na decisão, em tom duro, Cármen Lúcia afirmou que as regras do decreto “dão concretude à situação de impunidade, em especial aos denominados ‘ crimes de colarinho branco’, desguarnecendo o erário e a sociedade de providências legais voltadas a coibir a atuação deletéria de sujeitos descompromissados com valores éticos e com o interesse público garantidores pela integridade do sistema jurídico”. Para ela, “as circunstâncias que conduziram à edição do decreto, numa primeira análise, demonstram aparente desvio de finalidade”. A ministra explicou que o indulto é uma medida humanitária, e não “pode ser instrumento de impunidade”. Segundo Cármen Lúcia, pelo indulto, o criminoso ganha uma nova chance de superar seu erro. “Indulto não é prêmio ao criminoso, nem tolerância ao crime”, afirmou a presidente do STF, acrescentando que indulto fora da finalidade estabelecida na lei “é arbítrio”.

A ação foi sorteada para a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que poderá liberar o caso para o julgamento em plenário a partir de fevereiro, quando terminar o recesso do STF. Responsável pelos processos da Operação LavaJato em Curitiba, o juiz Sergio Moro elogiou a decisão da presidente do Supremo: — Decisão acertada da ministra Cármen Lúcia. O governo pode muito, mas não pode tudo. Ex- chefe da secretaria de cooperação internacional do Ministério Público, o procurador Vladimir Aras também comemorou a decisão: — É muito boa. Restabelece a autoridade do Poder Judiciário e o princípio da garantia e do cumprimento das leis penais. O ministro da Justiça, Torquato Jardim, reuniu- se com o presidente Temer após a decisão de Cármen Lúcia para avaliar possíveis medidas. — O que o presidente orientou o Ministério da Justiça é que nós estudemos outros critérios que possam acolher os brasileiros excluídos dessa decisão — disse Jardim em entrevista à TV Globo.

Estes novos critérios, segundo o ministro, exigiriam um novo decreto apenas para os pontos suspensos por Cármen Lúcia. — Pode ser nesse ano, como pode ser editado no ano que vem com efeito a 25 de dezembro deste ano — afirmou. Por 17 anos, só teve direito ao indulto quem tivesse cumprido um terço da pena. Entre 1999 e 2009, o benefício era dado a quem tinha sido condenado a uma pena máxima que variava de quatro a oito anos. De 2010 a 2015, a pena máxima para a concessão da liberdade passou a ser de 12 anos. O crime deveria ter sido praticado sem violência, que é o caso de corrupção e lavagem de dinheiro. Em 2016, veio a primeira mudança importante: o tempo de cumprimento da pena baixou de um terço para um quarto, para condenações de até 12 anos. No decreto deste ano, o tempo de prisão foi reduzido para um quinto, independentemente do tempo total da condenação. A decisão de Cármen Lúcia derruba a possibilidade de indulto para quem cumpriu um quinto da pena. Fica mantida, no entanto, a regra, também prevista no decreto, de benefício para quem cumpriu um terço da pena e não é reincidente.

O decreto deste ano também trazia a possibilidade do indulto mais rápido para gestantes. Cármen Lúcia suspendeu a eficácia desse ponto. Ela fez o mesmo em relação ao artigo que permitia a concessão de indulto a quem tinha sido condenado a pagamento de multa, mas ainda não tinha pago o valor. “Multa, pena pecuniária ou valor aplicado por outra causa não provoca situação de desumanidade ou digno de benignidade, por ser atuação judicial que beneficia a sociedade sem agravar, em demasia ou excessivo agravo, aquele que a tenha merecido em razão dos ilícitos julgados”, escreveu a ministra na decisão. Também foi suspenso o trecho do decreto que permitia o indulto a quem já teve a pena de prisão substituída por pena alternativa, ou que já estivesse em liberdade condicional. Outro ponto atingido foi a possibilidade da concessão do benefício a condenados em segunda instância que já estavam presos, mesmo que ainda houvesse recurso da acusação pendente de julgamento. ( Colaborou Gustavo Schmitt)

Palavra de especialistas

A VISÃO DE: Marco Antonio Teixeira, cientista político e professor da FGV- SP

GOVERNO SE DESGASTOU COM O EPISÓDIO

“Houve uma sucessão de erros com esse decreto que amplia as possibilidades de um preso condenado conseguir indulto. Politicamente, um governo que tem ministros pendurados no foro privilegiado e teve outros integrantes que caíram por causa de denúncias não deveria tratar de um tema como esse. Para a imagem do governo, foi um absurdo esse episódio, apesar de a Constituição dar amparo para o presidente fazer isso. Por outro lado, houve erro porque a decisão do Supremo Tribunal Federal significa interferência no Executivo. São dois erros que mostram a crise institucional que a gente vive. O decreto por si só é um absurdo. Foi uma derrota porque o governo se desgastou à toa ao se expor negativamente num momento ruim com o resultado do desemprego divulgado nesta semana, que foi uma ducha de água fria. O governo poderia ter passado sem essa”.

A VISÃO DE: Fernando A. de Azevedo, cientista político da UFScar

DERROTA AO SER OBRIGADO A RECUAR

“Essa decisão da presidente do STF, Cármen Lúcia, representa o sistema de pesos e contrapesos da democracia. O Tribunal interviu em um decreto em que a presidente entendeu que deve ser levado ao plenário. Obviamente é uma derrota para o governo do presidente Michel Temer, que tentou passar, às vésperas de um grande feriado, um decreto que beneficia os criminosos do colarinho branco. No cálculo do governo, a coisa passaria despercebida. O governo apelou para o jogo retórico ao defender o decreto e dizer que não faria mudanças. Ao fazer isso, passou recibo por dizer que não iria recuar e agora é obrigado a obedecer a liminar da presidente do STF. O episódio revela o esforço sistemático do governo de amenizar a situação dos implicados na Lava- Jato, especialmente os aliados, porque esse decreto é quase feito sob encomenda ao reduzir o tempo de cumprimento de pena e eliminar a multa para quem pede o indulto”.

A VISÃO DE: Gustavo Badaró, professor da faculdade de Direito da USP

DECISÃO TÉCNICA, MAS INTROMISSÃO COMPLEXA

“Do ponto de vista técnico, a decisão está correta. Se a ministra não suspendesse o decreto e, no futuro, o Supremo Tribunal Federal declarasse o texto inconstitucional, haveria o risco de que nesse meio tempo presos fossem beneficiados com base no decreto de Temer. E esse benefício não poderia ser revertido. Por outro lado, o presidente tem a prerrogativa constitucional de conceder o indulto aos réus condenados. Em regra, toda vez que a Constituição confere um poder ao presidente, ele pode usar. Pode usar bem ou usar mal, e não haverá ilegalidade. Existem críticas contra o decreto por parte de membros do Ministério Público e da Operação Lava- Jato. Mas o fato de esse indulto ser mais amplo, significa que é um abuso? Eu acho complicado o Poder Judiciário se intrometer num ato discricionário do presidente da República. Isso é fruto de uma judicialização de tudo que acontece no país. Esse debate saiu do palco político para ter como atores e protagonistas quem não tem esse poder. É bom lembrar, porém, que, em matéria de constitucionalidade, muitas vezes o STF tem que assumir um papel contramajoritário. O termômetro para a decisão final do Supremo não pode ser agradar a voz das ruas”.