O globo, n.30825 , 29/12/2017. PAÍS, p.4

Recesso sem flores

Merval Pereira

29/12/2017

 

 

A presidente do Supremo Tribunal Federal ( STF), ministra Cármen Lúcia, saiu- se com galhardia da primeira das pelo menos duas situações politicamente delicadas que tem que enfrentar durante este recesso. Diz- se em Brasília que durante o recesso vários assuntos desimportantes ganham relevância. São as flores do recesso. Mas este parece que não terá flores para Cármen Lúcia. Ao indulto natalino, se somará a provável condenação do ex- presidente Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4 ª Região ( TRF- 4), que pode gerar a determinação de cumprimento imediato da pena em regime fechado. O caso pode chegar ao STF ainda em janeiro, caso o Superior Tribunal de Justiça ( STJ) negue um habeas corpus, demandando da presidente uma decisão mesmo antes do fim do recesso. Circula em Brasília a informação de que Cármen Lúcia já revelou em conversas reservadas que concederá um habeas corpus se a defesa de Lula chegar ao STF. Ela não comentou diretamente, mas ao site “O Antagonista”, que divulgou essa versão, garantiu que defende o direito de liberdade de expressão. A presidente do Supremo não poderia desmentir ou confirmar a informação, pois estaria adiantando sua decisão, mas não é improvável que evite a prisão imediata de Lula, embora possa provocar reações negativas na opinião pública.

A aparente incongruência, pois Cármen Lúcia foi um dos votos favoráveis à permissão de prisão após condenação em segunda instância, sem necessidade de aguardar o trânsito em julgado, teria explicação na prudência, como alegou o juiz Sergio Moro ao condená-lo a nove anos e seis meses por lavagem de dinheiro e corrupção passiva no caso do tríplex do Guarujá. Moro diz na sentença que “caberia custódia preventiva do ex- presidente”, pela “orientação a terceiros para destruição de provas”, mas que a “prudência recomenda” que se aguarde julgamento pela Corte de Apelação “considerando que a prisão cautelar de um ex- presidente não deixa de envolver certos traumas”. Daí depreende- se que Moro considera que, após a decisão da segunda instância, a prisão deveria ser efetivada. Mas a decisão do Supremo não obriga juízes a mandarem prender os condenados antes do trânsito em julgado, apenas autoriza a prisão, dependendo de cada caso. As decisões do TRF- 4 têm sido no sentido de mandar cumprir a sentença após a condenação, mas, nesse caso específico, a tendência pode ser alterada, por se tratar de um ex- presidente.

E a ministra Cármen Lúcia pode transformar a prisão em domiciliar, por exemplo, impondo medidas cautelares adicionais. Já manter Lula afastado da atividade política é discutível, pois nenhuma medida cautelar desse tipo está prevista na legislação. Ele estaria recorrendo em paralelo contra a inelegibilidade eleitoral, de tornozeleira e tudo, e poderia continuar fazendo campanha. Provavelmente mesmo dentro da cadeia poderá fazê- lo, assim como José Dirceu, solto ou preso, continua atuando politicamente. Na decisão sobre o indulto de Natal expandido por Temer, Cármen Lúcia alega que “as circunstâncias que conduziram à edição do decreto demonstram aparente desvio de finalidade”. Ela considera que houve “relativização da jurisdição” e “agravo à sociedade”. A decisão foi tomada diante de uma ação da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, apresentada ao STF com pedido de urgência. Na decisão, Cármen Lúcia afirmou que as regras do decreto “dão concretude à situação de impunidade, em especial aos denominados ‘ crimes de colarinho branco’, desguarnecendo o erário e a sociedade de providências legais voltadas a coibir a atuação deletéria de sujeitos descompromissados com valores éticos e com o interesse público garantidores pela integridade do sistema jurídico”.

Para ela, “as circunstâncias que conduziram à edição do decreto, numa primeira análise, demonstram aparente desvio de finalidade”. Na decisão, a ministra explicou que o indulto é uma medida humanitária, e não um meio para favorecer a impunidade. “Indulto não é nem pode ser instrumento de impunidade”, do contrário se transforma em “indolência com o crime e insensibilidade com a apreensão social, que crê no direito de uma sociedade justa e na qual o erro é punido e o direito respeitado”. Tanto a presidente do STF quanto a procuradora-geral usam argumentos semelhantes e duros ao afirmarem que o indulto fora da finalidade estabelecida na lei “é arbítrio”, segundo Cármen Lúcia. Já Raquel Dodge escreveu que “o chefe do Poder Executivo não tem poder ilimitado de conceder indulto. Se o tivesse, aniquilaria as condenações criminais, subordinaria o Poder Judiciário, restabeleceria o arbítrio e extinguiria os mais basilares princípios que constituem a República Constitucional (...)