Título: Um medo constante
Autor: Sassine, Vinicius
Fonte: Correio Braziliense, 06/02/2012, Brasil, p. 5

Pacientes e médicos alertam para o risco do mal súbito, o tipo da morte de seis a cada 10 casos fatais de Chagas » Enviado especial

Trindade (GO) — A visão se distancia, até sumir. Volta devagar, mas volta. O coração se acelera. Para. E retorna aos poucos, no ritmo de um músculo doente, que mais treme do que pulsa.

O coração de João Florencio da Silva, de 48 anos, ganhou um marcapasso há oito meses, um procedimento de urgência para dar sobrevida, um respiro ao órgão. O corpo sente. Fraqueza, tontura, impossibilidade física de trabalhar. E isso para um homem que, até o dia anterior à internação para a cirurgia do marcapasso, vacinou o gado todo do patrão.

Os protozoários do mal de Chagas geraram fibroses no coração de João Florencio. São camadas de células a mais no músculo cardíaco que deixam o trabalhador rural resignado. Ele e a família. A mulher, Maria de Jesus, 37 anos, acompanha todo o tratamento do marido. Sabe detalhes da via-crúcis pelos hospitais públicos de Goiás. O filho, Mauro Sérgio, 21, fala pouco sobre a saúde do pai. Prefere ouvir o que ele e a mãe dizem.

A cardiopatia é grave, com bloqueio quase completo das transmissões elétricas que fazem o coração bater. A musculatura incha, o coração cresce de forma inadequada. O marcapasso tenta reduzir a razão desse crescimento, dar ritmo ao coração, compensar a falta de força.

Os médicos são duros com João Florencio. "É fácil você morrer num tranco só, se continuar a capinar, roçar, tirar leite", ouviu no começo do tratamento. "Se não parar de trabalhar na roça, vai sofrer uma parada cardíaca", foi o segundo aviso. "Não acredito que você está falando, brincando, com o coração ruim desse tanto. Já era para você ter morrido." João Florencio entendeu a gravidade.

O marcapasso era uma questão de sobrevivência. "Você tem de pôr o marcapasso, e rápido. Se houver uma parada cardíaca, você não volta", avisou outro médico. A burocracia atrasou em quatro meses a realização da cirurgia. A prefeitura da cidade onde morava, Caldazinha, no interior goiano, sumiu com os papéis. Assim que encontrados, conseguiu se internar num hospital público em Goiânia.

O marcapasso melhorou sua vida. "O coração continua falhando, dá uns choques. É como uma dormência no pé, que vai passando. Mas me sinto bem melhor." João Florencio diz que não adianta ter medo. "Preciso seguir a orientação do médico e ver o dia passar." Aparecida, sua irmã mais nova, também tinha a doença de Chagas. Morreu aos 41 anos, três meses depois de fazer a mesma cirurgia que João Florencio fez. "Ela foi atender o telefone, arrastou o sofá, caiu e morreu."

Falência do coração A morte súbita é a principal preocupação de quem tem uma cardiopatia decorrente do mal de Chagas. De cada 10 mortes pela doença, seis são súbitas. É a falência do coração, que para e deixa de oxigenar cérebro e corpo.

"Quando a doença ataca o coração, é progressiva e evolui para a morte súbita, uma morte instantânea, sem tempo de chegar ao hospital", afirma o médico cardiologista Anis Rassi Júnior, doutor em doença de Chagas e com atuação em Goiânia e região. O médico criou uma técnica que estima o risco de morte de pacientes, num prazo determinado, conforme as alterações do coração.

João Florencio não faz relatos sobre esse tipo de diagnóstico por parte dos médicos que o atendem, no ambulatório especializado do Hospital das Clínicas, em Goiânia. O que o vem incomodando mais, nos últimos meses, é morar de favor na casa de uma irmã na periferia de Trindade, município a 20km de Goiânia. Ela cedeu a casa, não cobra aluguel do irmão. Foi uma forma de deixá-lo mais próximo do tratamento.

Nascido na roça, no interior de Goiás, e na fila do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para se aposentar, João Florencio não gosta de ficar sem trabalhar. "Se precisar sair ligeiro, não consigo. O corpo bambeia." Da última vez, fez a seguinte pergunta ao médico: "Então eu não presto pra nada?" De pronto, o médico lhe respondeu: "Presta pra viver."

Perigo iminente João Florencio com a mulher, Maria de Jesus; e o filho, Mauro Sérgio: médicos alertam para o risco da cardiopatia grave do trabalhador rural