Título: Massacre na Síria
Autor: Tranches, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 05/02/2012, Mundo, p. 20

Violência no país chega ao extremo com a morte de centenas de pessoas na cidade de Homs. Mesmo assim, Rússia e China vetam resolução no Conselho de Segurança da ONU contra o presidente Bashar Al-Assad » Pouco mais de 30 anos depois do maior massacre na história recente da Síria, o país revive o pesadelo com a pior crise desde que as manifestações por mudanças democráticas tiveram início, em março de 2011. Nas Nações Unidas, Rússia e China mantiveram suas posições contrárias à adoção de uma resolução mais dura contra Damasco e usaram seu poder de veto para barrar o texto apresentado pelo Marrocos, travando com os Estados Unidos uma verdadeira batalha diplomática no Conselho de Segurança. Mas quanto mais pressionado pela comunidade internacional, mais o regime de Bashar Al-Assad dá demonstrações de força na repressão às demonstrações contra seu governo. O número de mortos passava ontem dos 400, mas o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) relatou ao Correio que ele pode ser superior, uma vez que meios de comunicação também foram atingidos com os bombardeios, tornando quase impossível a atualização da contagem. Apesar do veto, a Rússia se comprometeu a enviar seu chanceler para se reunir com o presidente Assad em Damasco, na terça-feira.

O recente massacre na Síria ocorreu em Homs, berço dos protestos contra Assad, entre sexta-feira e sábado ( horário local), e deixou pelo menos 350 mortos na cidade. Outras pessoas foram mortas ontem durante funerais. Mais 53 vítimas foram registradas nas demais cidades, inclusive na capital, Damasco. O médico patologista sírio Mousab Azzawi, chefe-coordenador do OSDH, órgão baseado em Londres e que se diz sem vínculos com a oposição ou com o regime, explicou que as mortes foram causadas principalmente pelos bombardeios e pela artilharia das forças oficiais. Os relatos são repassados ao observatório principalmente por médicos lotados em hospitais sírios. O governo negou responsabilidade pelo massacre e atribuiu as informações ao interesse da oposição síria em fazer pressão antes da reunião no órgão máximo da ONU.

Enquanto opositores participavam de um funeral em Homs (no alto), protestos ocorriam em diferentes países, como no Líbano (E). No Egito, embaixada síria foi invadida e incendiada

"Este é o período mais crítico desde que os protestos tiveram início, em março passado, porque o regime está tentando mostrar que continua forte", afirmou Azzawi, comparando a situação com o cenário de 2 de fevereiro de 1982, quando, sob o governo do então presidente sírio, Hafiz Al-Assad, pai de Bashar, forças oficiais mataram mais de 20 mil pessoas, de maioria sunita, na cidade de Hamah. A mão de ferro do filho, para o médico, significaria ainda sua maneira de enviar uma mensagem à comunidade internacional de que não teme qualquer medida contra seu regime.

As mortes dos civis foram denunciadas também pelo Conselho Nacional Sírio (CNS), que reúne a maioria das correntes de oposição. A Irmandade Muçulmana, que integra o CNS, pediu a abertura de uma investigação internacional. Segundo o médico sírio, a medida mais urgente na Síria, neste momento, seria a criação de um corredor humanitário e de uma zona tampão para permitir que os civis deixem o país em segurança.

Sem consenso Um consenso em torno de uma medida para estancar a violência na Síria parece ainda longe. Membros permanentes e rotativos do Conselho de Segurança da ONU passaram mais de uma semana negociando, sem sucesso, um projeto de resolução mais dura contra Assad. O acordo esbarrou na resistência da China e da Rússia, que ontem usaram seu poder de veto (delegado aos cinco membros permanentes) para barrar a proposta marroquina. Mesmo sem um acordo, o documento foi levado à votação e, apesar de os outros 13 países apreciá-lo, os votos russo e chinês jogaram por terra a tentativa de uma saída diplomática.

O texto baseava-se no plano da Liga Árabe, apresentado, aceito, mas não cumprido por Damasco anteriormente. O ponto mais polêmico previa a entrega do poder ao vice-presidente sírio, Farouk al-Shara, que ficaria responsável pela transição, com a formação de um governo de unidade nacional. Mas esse aspecto foi retirado na tentativa de atender à demanda russa, tradicional aliado sírio. As concessões, porém, não foram suficientes para convencer Moscou. Antes da votação, o chanceler russo, Serguei Lavrov, havia afirmado que submeter a proposta à votação provocaria um "escândalo". Ele se reunirá com Assad na terça-feira.

Na justificativa de suas respectivas posições, as expressões nos rostos dos representantes na reunião, em Nova York, deixavam evidente o clima de tensão. A embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Suzan Rice, disse que seu país via como "vergonhosa" a posição da China e da Rússia de "protegerem um tirano", para quem os russos continuam vendendo armas, em uma referência aos acordos entre Moscou e Damasco no setor de segurança. "Qualquer derramamento de sangue estará nas mãos deles", afirmou a embaixadora. O representante francês, Gerard Araud, disse que os russos e os chineses tornaram-se "cúmplices da política de repressão levada a cabo pelo regime de Assad".

O embaixador russo na ONU, Vitaly Churkin, por sua vez, alegou que a resolução era "desequilibrada" e acusou o Ocidente de tentar promover a troca de regime na Síria. A China alegou que forçar a votação enquanto os países ainda estavam divididos não ajudaria a manter a unidade e a autoridade do Conselho. Já o embaixador sírio, Bashar Jaafari, disse que seu país tem sido "alvo de punição de algumas potências".

O secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, declarou, por meio de seu porta-voz, Martin Nesirky, que a "lamentava profundamente" o fracasso na adoção da resolução. "(O resultado) enfraquece o papel das Nações Unidas e da comunidade internacional neste momento em que as autoridades sírias deveriam escutar uma só voz, pedindo o fim imediato da violência contra o povo". Antes da votação, o presidente norte-americano, Barack Obama, instou Assad, em comunicado, a deixar o poder. "Assad deve pôr fim agora À sua campanha de assassinatos. Deve dar um passo atrás e permitir que comece de imediato uma transição democrática", afirmou.

Enquanto uma decisão multilateral não se concretiza, a Presidência da Tunísia, primeiro país a vivenciar as transformações da Primavera Árabe, que levaram à queda do regime autoritário de Zine Al-Abidine Ben Ali, afirmou em comunicado que começou os procedimentos para expulsar o embaixador sírio em Túnis após o massacre de ontem. Antes, manifestantes fizeram uma grande demonstração próximo ao prédio da representação. Protestos como esse ocorreram ainda em outras cidades do Oriente Médio e da Europa, como Londres, Trípoli, Cairo e Cidade do Kuwait.