Título: Ditadura da economia
Autor: Bonfanti, Cristiane
Fonte: Correio Braziliense, 05/02/2012, Economia, p. 15

Para especialistas, as pessoas estão mais empenhadas em ter casa, emprego e uma posição social. Não se preocupam com ações que influenciem a vida dos outros » » ANA D`ANGELO

A universitária Débora Ferreira Couto Pinto, 19 anos, foi às urnas pela primeira vez nas eleições que levaram Dilma Rousseff à Presidência da República. A brasiliense tem consciência de que exerceu um direito conquistado a duras penas ao longo da história política brasileira. Para ela, no entanto, falar sobre a atividade dos deputados e senadores no Congresso Nacional faz pouco sentido. Diferentemente da maioria dos brasileiros, Débora é um exemplo de cidadania quando o assunto é não jogar lixo no chão ou dar lugar a um idoso no ônibus, mas não se lembra de todos os deputados em quem votou. "Não tenho o menor interesse. É sempre a mesma história. Até já tentei, mas vejo o descaso o tempo todo", justifica.

No que diz respeito à política, Débora é bem diferente de sua mãe, a funcionária pública Rosa Maria Ferreira Lima, 57 anos. Filha da ditadura, no seu tempo de escola, a paulista de São Vicente aprendeu a cantar o Hino Nacional com a mão direita sobre o coração. Na sala de aula, ela ouviu preceitos voltados ao respeito, à ordem e à obediência. À época, a disciplina obrigatória denominada Educação Moral e Cívica difundia os valores exigidos pelo governo de seus cidadãos.

Democracia A diferença entre a prática de cidadania de Rosa e de Débora é um retrato fiel do que ocorreu entre as suas gerações. Autor da dissertação de mestrado em direito Concepção da Cidadania, defendida na Universidade de São Paulo (USP), Ovídio Jairo Rodrigues Mendes, explica que se, antes, a ditadura era política, hoje, ela é econômica. "As novas gerações estão menos cidadãs", sentencia. A seu ver, as mudanças refletem, entre outros fatores, a própria democratização. A educação passou a ser voltada para que a pessoa tenha condições de competir no mercado de trabalho. "Se a pessoa tem casa, emprego e uma determinada posição, significa que ela atende às necessidades do dia a dia. Mas não está preocupada com o seu papel na sociedade nem em como a sua ação cotidiana influi na vida dos outros", observa o pesquisador.

Não à toa, o antropólogo Gilberto Velho afirma que existem dois brasis. Um onde as pessoas têm mais dinheiro no bolso, alimentam-se melhor e compram aparelhos modernos. E outro em que boa parte dessas mesmas pessoas vive em bairros sem água e esgoto, tendo que usar um transporte público precário. "Um país que tem hospitais e escolas públicas funcionando com a atual precariedade não está sequer perto de um projeto de cidadania mais efetivo", avalia. Ele destaca o contraste: "Há coisas extraordinárias, casas com computadores e televisores grandes, de última geração. Mas essas mesmas famílias não têm acesso à educação e a sistema de saúde de qualidade".

Para Rosa, moradora da Asa Sul, em Brasília, um dos piores transtornos na cidade é o trânsito. "Cada um está em seu carro. Você dá a seta e os outros motoristas aceleram para não deixar você entrar", reclama. O comportamento, mais uma vez, se reflete nas estatísticas. Sob a justificativa de dar mais "uma fechadinha" ou ultrapassar o sinal por um motivo mais nobre ou urgente, o trânsito deixa um rastro de sangue. Dados do Ministério da Saúde revelam que, de 1996 a 2010, o número de mortos em acidentes saltou 15%, de 35,3 mil para 40,6 mil. Em 15 anos, a violência nas vias públicas ceifou 519 mil vidas.

Ao contrário do princípio de que, no trânsito, o mais forte protege o mais fraco, os que estão cercados de menos equipamentos são os mais prejudicados. Em 2010, dos 40,6 mil mortos, o maior número foi de motociclistas: 10.134. Depois deles, estão os pedestres (9.078), os motoristas de automóveis comuns (8.659) e os ciclistas (1.453). Os condutores de transporte pesado — sim, os mais fortes — somaram 738 óbitos. Além da própria vida, o custo para os cofres públicos foi alto. As 146.060 internações de vítimas de acidentes de trânsito financiadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em 2010 causaram um rombo de R$ 187 milhões.