Os 50 centavos que opõem BNDES e TCU

Fernando Torres e Francisco Góes

19/07/2017

 

 

Era junho de 2007 quando um gestor de fundo de investimento foi à sede da JBS para uma reunião com Joesley Batista. O tema do encontro era um aumento de capital. Meses após a JBS estrear na bolsa, e de ter levantado R$ 1,2 bilhão em oferta primária de ações, surgiu a possibilidade de compra da Swift nos Estados Unidos. Mas o dinheiro arrecadado na oferta pública inicial (IPO) não era suficiente e a JBS passava novamente o chapéu. O profissional lembra que Joesley, com a camisa entreaberta e corrente no pescoço, gastou bom tempo da reunião contando como havia convencido o “professor Luciano Coutinho”, então presidente do BNDES, sobre a lógica do negócio. Para o gestor, todos que colocaram dinheiro na época conheciam o destino dos recursos e viam lógica estratégica e de gestão de risco sanitário na aquisição. O preço do aumento de capital, de R$ 8,15 por ação, definido a partir da média da cotação em 30 pregões, acrescido de um adicional de R$ 0,50 por papel, não chamou a atenção. O valor superava levemente os R$ 8,00 fixados nos IPO e, no dia da subscrição, os minoritários privados exerceram em massa o direito de preferência, injetando R$ 414 milhões no aumento de capital. Esses 50 centavos, que passaram despercebidos para o gestor privado, se transformaram no símbolo de uma disputa entre Tribunal de Contas da União (TCU) e a BNDESPar, empresa de participações do banco de fomento. Usando uma régua de direito administrativo, que se distancia da realidade do mercado de capitais, o ministro relator Augusto Sherman e seus colegas de pleno no TCU refutaram os argumentos de defesa, que haviam sido acatados pela auditoria técnica do órgão, e, alegando falta de justificativa para a existência do “ágio” de R$ 0,50, seguem vendo indício de favorecimento dos funcionários do banco à JBS. E querem cobrar deles a devolução de R$ 129 milhões, para reparar o suposto dano ao erário. Para tornar o caso mais delicado, a mesma investigação do tribunal, incluindo os outros aportes feitos pela BNDESPar na JBS, serviu de base para a Operação Bullish da Polícia Federal, que determinou a condução coercitiva de 31 funcionários do banco para tomada de depoimento em 12 de maio, além de Luciano Coutinho.

A PF fala em suspeita de gestão fraudulenta e gestão temerária nas operações com a JBS, que teriam causado prejuízo da ordem de R$ 1,2 bilhão ao BNDES. Para uma dezena de técnicos do banco ouvidos pelo Valor nos últimos 30 dias — grupo que inclui funcionários da ativa e aposentados, que passaram por diversas administrações, incluindo as mais recentes, nos governos do PSDB e do PT —, a prosperar esse tipo de critério para análise das operações da BNDESPar, a empresa se tornará inviável. O Valor pediu a quatro gestores de fundos de investimento que eles fizessem uma avaliação sobre os questionamentos apresentados pelo TCU a respeito dos preços de subscrição nesta e nas outras operações de apoio do BNDESPar à JBS. Para eles, que preferiram não ter o nome revelado, a tese do tribunal a esse respeito é frágil. “Pagar R$ 0,50 em relação ao preço de mercado, não quer dizer absolutamente nada, nem para o mal e nem para o bem. Se a aquisição da Swift que for realizada com o dinheiro da emissão agregar valor à empresa, R$ 0,50 a mais pode ser até barato. Por outro lado, se a aquisição destruir valor, pagar até valor de mercado pode ser caríssimo. Não tem regra”, disse um deles. Sobre a adesão dos minoritários aos dois primeiros aumentos de capital, os especialistas em gestão de recursos e finanças entendem que cabe aos investidores privados fazer sua própria análise, mas avaliam que a participação do BNDES pode ter estimulado a adesão. Para um profissional, sempre que existe um grande investidor âncora por trás, isso dá “segurança para o minoritário” participar. Segundo esse gestor, contudo, isso é um sinal de que as análises técnicas do banco eram vistas positivamente, e não negativamente, pelo mercado. “Se houvesse a percepção de que o BNDES estivesse participando de um esquema, e pagando um preço que não parecia justo, ninguém entraria”, afirma.

A fim de esclarecer aspectos técnicos da disputa entre BNDESPar e TCU, o Valor publica entre hoje e amanhã uma reportagem especial com detalhes das transações. As informações são baseadas nos acórdãos do tribunal, na íntegra das respostas do banco ao órgão fiscalizador, às quais o jornal teve acesso, no inquérito da PF e em entrevistas com funcionários e ex-funcionários do banco, bem como profissionais do mercado. O relator do caso no TCU se manifestou por escrito e terá a íntegra do posicionamento publicada amanhã. A primeira manifestação do tribunal de contas sobre o caso data de novembro de 2015, por meio do acórdão de número 3011, muito antes de os irmãos Joesley e Wesley Batista pensarem em fazer delação premiada, e de confessarem ter pagado propina ao alto escalão do governo petista para não ter dificuldade na obtenção de apoio do BNDES para seus projetos. Nos depoimentos, Joesley isentou Coutinho e o corpo técnico. O acórdão, de 105 páginas, tratou de forma conjunta dos aportes do BNDES na JBS e no setor de carnes. E listou uma série de indícios de irregularidades. Os casos foram desdobrados em “filhotes” e, por ora, apenas o investimento para compra da Swift pela JBS e o aporte da BNDESPar no Independência resultaram abertura de Tomada de Contas Especial (TCE), considerada a instrução do processo, que é o momento no qual os supostos responsáveis por terem causado dano ao erário são citados e apresentam sua defesa. Além dos técnicos do BNDES, recentemente Joesley Batista foi incluído na lista. Preocupados com as cobranças de cifras que não possuem e com processos criminais que podem vir a sofrer por decisões de investimento que entendem ser típicas de uma empresa de participações, técnicos da BNDESPar dizem que a aprovação de novos aportes pela instituição ficará comprometida. Para os funcionários, pela forma que o TCU analisa as operações, qualquer investimento feito pela empresa no passado — ou qualquer decisão de gestor de recursos de terceiros do setor privado — sempre poderia ser questionada. “É olhar pelo retrovisor”, diz uma fonte. “Um gestor toma decisão com base em informação disponível no momento do investimento. Fazer análise à frente ignorando esse contexto não é correto”, afirma outra.

Crédito x capital

Um primeiro ponto importante sobre os investimentos na JBS é que as operações foram realizadas pela BNDESPar, e não pelo BNDES, seu controlador. A empresa de participações, criada em 1982, faz gestão essencialmente da carteira de ações do banco. Não há, portanto, crédito subsidiado com custo da TJLP ou inferior. Além de apoiar, com capital, as políticas governamentais de forma paralela ao suporte dado pelo banco nas operações de crédito, a BNDESPar tem como missão desenvolver o mercado de capitais brasileiro e tem o papel também de prover de recursos para as operações do controlador. De 2007 a 2016, a empresa de participações teve lucro de R$ 17 bilhões e distribuiu quantia semelhante em dividendos ao BNDES. Entre ganhos e perdas que uma empresa do tipo tem, os grandes prejuízos contabilizados nos últimos anos, na casa dos bilhões, foram com ações da Petrobras e Eletrobras recebidas da União. No caso da JBS, não há prejuízo nominal. No pico, em setembro de 2015, a soma de recebimentos e ações em carteira atingiu R$ 15 bilhões, com retorno de 85%, ante perda de 20% do Ibovespa em igual período e próximo do CDI (96%). Com cotações pós-delação, a BNDESPar tem ganho de 13%, ou R$ 1 bilhão, enquanto o Ibovespa sobe 11% e o CDI acumula alta de 142%. O questionamento dos aportes na JBS e em outras “campeãs nacionais” costuma se basear no mérito, ou seja, se é papel do BNDES apoiar internacionalização de empresas, e com um volume tão grande de recursos. A área técnica argumenta que apenas executa políticas públicas definidas pelos governos do país. A BNDESPar teria sido chamada a atuar como hospital de empresas na década de 1980, para participar do processo de privatização nos anos 1990 e mais recentemente para incentivar a formação de multinacionais brasileiras. E todas as tarefas teriam sido cumpridas, independentemente da ideologia dos funcionários do banco. Na área de carnes, após a equipe econômica da época verificar que, entre os setores em que o Brasil tinha diferencial competitivo, esse era o único que não contava com suporte da BNDESPar, decidiu-se apoiar o setor. Havia a avaliação, também, de que o setor de frigoríficos tinham um alto nível de informalidade e fiscal e sanitária. O investimento no setor poderia atacar esses problemas, o que, no entender do BNDES, foi alcançado. Entre 2007 e 2012, a BNDESPar investiu R$ 12,4 bilhões em empresas de proteína animal, sendo R$ 5,6 bilhões na JBS, R$ 3,6 bilhões na Marfrig, R$ 2,5 bilhões na Bertin, R$ 430 milhões na BRF e R$ 250 milhões no Independência. Como o Bertin se fundiu com a JBS no fim de 2009, o valor total alocado na empresa passou a ser de R$ 8,1 bilhões.

Processo e prazos

Os técnicos explicam que os projetos apresentados à área de mercado de capitais do BNDES chegam ao banco pela mesma porta pela qual entram os pedidos de financiamento: os departamentos de prioridades e de investimentos da área operacional. Eles verificam a aderência do projeto às políticas de apoio do banco. A JBS era cliente do BNDES, na área de crédito, desde o fim dos anos 1990 e tinha desenvolvido expertise de comprar empresas operacionais, em especial aquelas com dificuldade financeira. Segundo os funcionários do banco, o interlocutor da JBS que normalmente conversava com a equipe técnica do BNDES sobre as operações de apoio ao grupo era Sérgio Longo, diretor financeiro do frigorífico, além do próprio Joesley Batista, então presidente da empresa e membro da família controladora. Embora a porta de entrada formal das operações de mercado de capitais seja a mesma que a dos financiamentos, há uma diferença importante. Os técnicos relatam que, diante da sensibilidade de informações que em muitos das operações da BNDESPar envolviam companhias abertas, com ações em bolsa de valores, existia uma etapa de negociação prévia entre empresa e área técnica do banco, de forma que a “carta-consulta” era registrada no sistema do BNDES com alguns dos aspectos principais do negócio já discutidos. A preocupação era de manter sigilo, para evitar vazamento de informações e o eventual uso indevido dela por qualquer investidor no mercado de capitais. Mas todas as operações tinham que passar pelo trâmite formal e completo dentro da instituição. Os técnicos contam que todo pedido de apoio feito por uma empresa à área de mercado de capitais do BNDES era submetido a um comitê gerencial antes de chegar ao superintendente da área. Cabia ao departamento responsável pela operação dentro do banco submeter a transação a esse comitê gerencial, formado por técnicos e executivos de alto escalão do banco. “Ali, todos tinham voz igual, a ideia era buscar conhecimento e experiência de todos. No comitê, se dava o aprimoramento, o polimento da operação”, diz uma fonte.

Passada essa etapa, todos os aportes ainda precisavam ser aprovados por um colegiado de duas dezenas de superintendentes, passar por análise técnica e jurídica envolvendo grupos de quase dez pessoas e depois eram submetidos à diretoria, em reuniões gravadas, em que raramente se discorda da área técnica. Uma fonte de fora do banco que acompanhou negociações entre JBS e BNDES conta que as conversas eram “absolutamente normais”, com as minutas de contrato vindo cheias de comentários, algo compatível com uma negociação saudável. “Se as pessoas do outro lado estivessem num esquema, teriam facilitado a vida.” Olhando para trás, diz a fonte, “se teve essa bandalheira, de o Joesley ter comprado todo mundo lá em cima, os traficantes de influência estavam fora do campo de visão de quem lidava com a área técnica, e os contratos não refletem facilitação”. A existência da análise prévia da operação, contudo, suscitou o questionamento do TCU sobre prazos. No aporte para compra da Swift, passaram-se 22 dias entre a formalização da carta-consulta e aprovação pela diretoria. Questionado pelo TCU, o BNDES apresentou dados de outras seis operações de mercado de capitais envolvendo cinco empresas — Fibria, Renova, Iochpe, Triunfo e Taesa —, em que o prazo médio até a aprovação foi de 23 dias. E a instituição procurou demonstrar, com trocas de e-mails e reuniões agendadas, que as negociações com a JBS foram longas, em tempo superior aos registros. A auditoria do TCU criticou o processo, argumentando que o banco precisa desenvolver uma maneira de documentar todas as etapas do processo, ainda que de forma sigilosa, mas aceitou a defesa do banco, entendendo que não era possível verificar favorecimento à JBS por conta disso. Os ministros do TCU, contudo, mantiveram o questionamento, citando o prazo de 210 dias que o banco divulga ser o tempo médio para aprovar financiamentos. “Toda a análise do TCU, mas sobretudo da PF, parte de premissa equivocada. A operação é analisada pela lente do crédito, mas trata-se de uma operação de renda variável”, diz uma fonte. Outro possível risco por conta da análise prévia seria a discriminação de empresas que tivessem potencial para receber aportes. Conforme relato dos técnicos, outros frigoríficos procuraram o banco para receber apoio, mas não havia condições mínimas para se fazer os investimentos. “Era um setor informal, com caixa 2 e muitas vezes com empresas com balanço batido à máquina, sem auditor, em que o ativo não batia com o passivo”, cita um profissional. Se a empresa sentisse que estava sendo prejudicada indevidamente nessa negociação prévia, diz outra fonte, havia a oportunidade de registrar a carta-consulta, para que a negativa e o motivo fossem formalizados.

Esta é a primeira reportagem de uma série, que continua amanhã

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4300, 19/07/2017. Especial, p. A12.