Título: Terreno fértil para o barbeiro
Autor: Sassine, Vinicius
Fonte: Correio Braziliense, 05/02/2012, Brasil, p. 6/7

Enviado especial

Santa Maria da Vitória (BA) e São Félix do Coribe (BA) — Atrás das portas das casas simples, muitas delas de adobe e madeira, papéis pregados para o controle das visitas de agentes de saúde dão a dimensão do abandono: os últimos registros da presença de um agente de combate aos barbeiros são de 2006. As propriedades familiares na zona rural de Santa Maria da Vitória e de São Félix do Coribe, cidades separadas pelo Rio Corrente, distantes 600km de Brasília, foram esquecidas pelo poder público a partir de julho de 2006, o mês seguinte à certificação conferida ao Brasil pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Em junho daquele ano, o país conquistou o atestado de que estava livre do barbeiro mais temido, o Triatoma infestans. Houve, então, um mutirão em quase todas as casas de Santa Maria e São Félix. Desde aquela época, não houve mais borrifação. Quem apareceu, aos montes, foram os barbeiros.

Dos 13 municípios que integram a regional de saúde sediada em Santa Maria da Vitória, 10 deixam de fazer a pesquisa de vetores nas casas e a borrifação de veneno. Antes, essa era uma competência da União, mais especificamente da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), vinculada ao Ministério da Saúde. Com a pactuação da medida, estados e municípios passaram a ser responsáveis pelo combate dos vetores. Um fracasso, como atestam os agentes da Funasa que atuam nas cidades onde o Correio esteve.

Valdir Cassemiro de Carvalho, agente da Funasa em Santa Maria e lotado na regional vinculada à Secretaria de Saúde da Bahia, conta que recebe notificações de barbeiros até mesmo nas periferias das cidades. De Jaborandi (BA), chegaram "caixas e mais caixas" de barbeiros. O município faz o combate, segundo Valdir. Não é o caso das prefeituras de Santa Maria e São Félix, que alegam falta de carro e de equipes para combater o barbeiro.

O Correio pediu ao agente Valdir para fazer uma busca técnica de barbeiros nas casas da zona rural de Santa Maria. Na primeira procura, na primeira casa da primeira estrada de chão, o técnico encontrou uma espécie dentro da casa e no galinheiro da propriedade rural do casal Maria das Virgens dos Santos de Souza, de 81 anos, e Joaquim Inácio de Souza, 77.

A espécie encontrada era o Triatoma sordida, considerado um substituto do infestans. O sordida é menos perigoso, prefere os galinheiros, mas oferece riscos de transmissão da doença. Está nas listas dos principais vetores elaboradas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pelo Ministério da Saúde. A quantidade de barbeiros encontrada no telhado do galinheiro impressiona. "Eu pego, arranco o bico dele e jogo fora. Se fosse para eu morrer, já tinha morrido. Desde pequeno eu sou picado", diz Joaquim. "Meus filhos ficam iluminando com a lanterna dentro de casa. Quando o bicho voa para dentro de casa, a gente mata", reforça Maria. "Não tenho medo de barbeiro. Isso não é onça."

A casa de Joaquim e Maria já é de alvenaria, o que não foi suficiente para evitar a presença dos vetores da doença de Chagas. "Estamos largados para as cobras. Não vem ninguém aqui. Parece que não tem governo", afirma Joaquim. O registro de papel atrás da porta mostra que um agente de saúde esteve na casa dos dois em 29 de junho de 2006, 20 dias depois da solenidade oficial preparada pelo Ministério da Saúde para receber a certificação da OMS.

Galinheiro Na região da Baixa da Onça, próxima à Várzea da Tiririca, onde está a casa de Joaquim e Maria, o agente Valdir voltou a encontrar o Triatoma sordida. Os barbeiros estavam no galinheiro da propriedade rural de Maria Carlota dos Anjos, 74 anos, que vive no local com um dos filhos, Paulo dos Anjos, 33. Uma outra filha, que mora em Goiânia, faz tratamento para a doença de Chagas. Maria e os filhos nasceram na Baixa da Onça. Moraram por muito tempo em casas de pau a pique, cujas frestas são escolhidas pelos barbeiros. Os espaços entre as paredes de adobe também são adotados pelos insetos.

"Costumo colocar remédio. Acho muitos mortos", afirma Maria. Os agentes da Funasa em Posse (GO), na divisa com a Bahia, relatam que os povoados de Curralinho e Trombas estão infestados por barbeiros. O combate aos vetores da doença de Chagas não ocorre desde 2008. "Da última vez, foram coletados 8 mil barbeiros na região de Posse, dos quais cinco ou seis estavam contaminados com o protozoário", diz o agente da Funasa Valdir Santana. Os insetos são encontrados também em outras cidades do nordeste goiano, como Cavalcante e Guarani de Goiás.

Carlos Chagas e a descoberta

1878 Carlos Ribeiro Justiniano Chagas nasce em 9 de julho, na Fazenda Bom Retiro, próxima à cidade de Oliveira, em Minas Gerais.

1897 Matricula-se na Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro.

1902 Para um doutorado, passa a atuar no Instituto Manguinhos, depois intitulado Instituto Oswaldo Cruz.

1905 É convidado por Oswaldo Cruz para uma campanha de combate à malária.

1908 Examina o sangue de um sagui e identifica um protozoário do gênero Trypanosoma. Numa viagem a Pirapora (MG), pernoita num rancho e nota a abundância de barbeiros nas casas de pau a pique. Chagas examina alguns barbeiros e encontra no intestino dos insetos formas flageladas de um protozoário. Pesquisas em laboratório em Manguinhos mostra a existência do Trypanosoma cruzi.

1909 Carlos Chagas faz exames de sangue em moradores de região infestada por barbeiros. Em abril, encontra o protozoário no sangue de Berenice, uma criança de 2 anos de idade. O médico comunica a descoberta da nova doença no mesmo mês.

A partir de 1910 A doença, já com o nome de Chagas, passa a ser exaustivamente pesquisada. O brasileiro é indicado por duas vezes ao Prêmio Nobel de Medicina, em 1913 e em 1921, mas não vence.