Regulamentação da gorjeta

Rogério Pires da Silva

01/08/2017

 

 

A Lei 13.419/17, em vigor desde 13 de maio deste ano, modificou a disciplina trabalhista da gorjeta que costuma ser oferecida por clientes de diversos estabelecimentos aos seus empregados. A regra é aplicável a "bares, restaurantes, hotéis, motéis e estabelecimentos similares" (art. 1º), mas em teoria poderia ser estendida também às gratuidades pagas em cabeleireiros, manicures, lojas de reparos de roupas, engraxatarias, postos de combustíveis, dentre outros. E nada obsta que se aplique igualmente à guelta - comissão informal para incentivar a venda de certos produtos e serviços, como a que é paga por corretores de seguros a vendedores de automóveis para estimular a venda de seguro automotivo. A guelta, afinal, já é equiparada à gorjeta para fins trabalhistas. A gorjeta não pode ser exigida do consumidor, mas costuma ser acrescentada ao preço de produtos e serviços, ainda que com a advertência de que o pagamento é opcional. Pertence aos empregados, sempre, mas acaba por se incorporar ao salário para todos os fins quando é exigida pelo estabelecimento. De um lado a nova lei trata dos critérios de repartição da verba entre os empregados, adotando parâmetros que já vinham sendo aplicados na prática dos acordos coletivos de trabalho. Mas de outro traz a novidade (até então proibida pelas Cortes trabalhistas) de permitir que o empregador retenha uma parte da gorjeta para fazer face às obrigações trabalhistas e previdenciárias decorrentes dessa verba.

Com efeito, a gratuidade é paga por um terceiro (o cliente) mas é o empregador quem de fato se onera com a incorporação dessa verba ao salário. A ele cabe pagar férias e 13º acrescidos da média das gorjetas recebidas, além do recolhimento de contribuições previdenciárias e FGTS. Tais encargos são de aproximadamente 157%. Vale dizer, para cada R$ 100,00 que transitam pela folha de salários, há encargos trabalhistas e previdenciários que na média representam custos adicionais de R$ 157,00 para o empregador. Uma das inovações da Lei 13.419/17 consiste, portanto, em permitir que os empregadores retenham 33% de toda a gorjeta recebida pelo estabelecimento, nos termos do que ficar convencionado em acordo coletivo de trabalho, revertendo o restante aos trabalhadores - mas esse percentual está longe de assegurar recursos para os encargos da folha, como se percebe. Para os empregadores sujeitos a regime de tributação diferenciado na esfera federal - ou seja, somente para as empresas enquadradas no Simples (Lei Complementar 123/06) - a retenção é de 20%, certamente porque nesse regime a carga previdenciária sobre a folha de salários é um pouco menor (os encargos trabalhistas são os mesmos). O repasse da gorjeta aos empregados fica submetido à retenção de Imposto de Renda pela tabela progressiva, de modo que o valor líquido das gorjetas efetivamente pago ao trabalhador será sempre menor do que aquele após a retenção de 33% (ou de 20%): em outras palavras, uma grande parte da gorjeta pertence ao Fisco antes mesmo de chegar ao bolso do trabalhador.

Mas se a retenção feita pelo empregador é claramente insuficiente para os ônus que decorrem da inclusão dessa verba na folha, por outro lado há também riscos tributários decorrentes da mera circulação da gorjeta no caixa do estabelecimento. Muito embora a gorjeta seja isenta de ICMS na maior parte dos Estados, a Receita Federal possui entendimento no sentido de que essa gratuidade deve ser incluída na base de cálculo dos tributos federais (por exemplo: Solução de Consulta 5/2006 da Superintendência Regional da RFB da 1ª Região), o que vale também para as pequenas e microempresas enquadradas no Simples (conforme a Solução de Consulta COSIT n. 191/14, e Resolução do Comitê Gestor do Simples Nacional n. 94/11, art. 2º, § 4º, II). Com amparo em precedentes que afastam a incidência de ISS municipal sobre as gorjetas, o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo que não incidem os tributos PIS, Cofins, IRPJ e CSL sobre essa gratuidade, desde que o repasse aos empregados seja integral (é o caso do Recurso Especial nº 399.596/DF). Ocorre que com a Lei 13.419/17 o repasse da verba aos empregados passa a ser parcial. Parece não ser o caso de incidência dos tributos federais nem mesmo sobre a parcela retida pelos empregadores, porque a retenção autorizada pela nova regra se presume feita justamente para o pagamento dos encargos daí decorrentes.

Todavia, a discussão jurídica passa a ser mais um ônus enfrentado pelo empresário. No caso de empresa tributada com base no lucro presumido - uma hipótese de carga fiscal mais branda - a gorjeta pode ficar sujeita à alíquota total de 6,73% (soma dos tributos federais incidentes sobre o faturamento) sobre uma renda que é meramente repassada ao empregado. Em suma, a Lei 13.419/17 deu um pequeno passo no sentido de minimizar os ônus do empregador em face dessa verba trabalhista, mas ao mesmo tempo - não se pode negar - permitiu, com a retenção, uma relevante diminuição dos ganhos habituais dos beneficiários da gorjeta, e uma possível incidência de impostos sobre a verba da qual o caixa da empresa é mero hospedeiro. Nesse estado de coisas, tudo conspira para que os estabelecimentos proíbam de uma vez seus clientes de pagar a gorjeta, pois sai mais barato. Talvez fosse melhor que o legislador desse à gratuidade um tratamento de completa isenção (previdenciária e tributária, pelo menos), se não pela ineficácia arrecadatória dessa verba, talvez em homenagem àqueles que fazem jus ao reconhecimento do consumidor (...)

Rogério Pires da Silva é sócio de Boccuzzi Advogados Associados

 

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Valor econômico, v. 17, n. 4309, 01/08/2017. Legislação & Tributos, p. E2.