Concorrência na economia digital

Vicente Bagnoli e Fernanda Madi

08/08/2017

 

 

Em maio, a Lei de Concorrência (Lei nº 12.529/2011) completou cinco anos de vigência. A norma introduziu mudanças institucionais e procedimentais à defesa da concorrência e muito se tem discutido acerca do que fez o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) ao longo desses últimos anos. No entanto, pouco se fala em relação ao futuro das políticas de concorrência no país, especialmente em relação aos efeitos no mercado das economias digitais. O impacto das economias digitais para o bem-estar da sociedade e do consumidor pode ser bastante expressivo. Empresas como Amazon, Microsoft, Facebook, Google e Apple fazem parte de uma nova conjuntura de mercado, e um olhar atento se faz necessário às alterações na dinâmica competitiva que estas empresas e suas tecnologias podem fomentar, e mais que isso, para as alterações nos conceitos de proteção à concorrência, proteção ao consumidor e aos dados pessoais. Em uma perspectiva internacional, enquanto nos Estados Unidos a atual política de concorrência é mais permissiva, sem amplas intervenções do Estado, limitando-se em grande parte a investigações de cartéis oriundas de acordos de leniência; na União Europeia e os seus respectivos Estados-membros, as recentes políticas e investigações tem priorizado estas atuais questões das economias digitais.

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Por exemplo, a Alemanha e a Áustria já estão inserindo como critério de notificações de fusões e aquisições, para além do faturamento das empresas, o critério baseado no valor da operação. Esta questão tornou-se particularmente evidente com a operação Facebook e WhatsApp. Apesar de a transação ter sido avaliada em US$ 19 bilhões, a empresa WhatsApp não atingia os critérios de faturamento e volume de negócios domésticos necessários na maioria dos regimes de controle de fusão dos Estados-membros da União Europeia, muito menos os critérios da própria Comissão Europeia, não obstante a mesma ter sido submetida e aprovada. Este é um fenômeno que se repete em muitas operações envolvendo empresas de tecnologia. O valor de mercado destas empresas e o impacto competitivo das operações podem ser expressos no valor da transação, mas não refletir, necessariamente, no volume de negócios ou no faturamento, critério utilizado por exemplo pelo Cade para definir quais operações devem ou não ser submetidas para a análise concorrencial. Outra importante questão a ser discutida é o potencial abuso de posição dominante destas empresas, que podem levar a situações de preços abusivos e fechamento de mercados, entre outros ilícitos concorrenciais. No mês de maio, o Facebook foi multado pela autoridade de concorrência italiana por abuso de posição dominante em prejuízo ao consumidor, após anunciar alterações na política de privacidade do WhatsApp.

Na Alemanha, também está em curso um processo contra o Facebook no qual a autoridade de concorrência investiga abuso de poder de mercado da empresa após a aquisição do WhatsApp. Já no último mês de junho, a Google foi condenada pela União Europeia a pagar uma multa recorde de 2,42 bilhões de euros (equivalente a aproximadamente 9 bilhões de reais) por abuso de posição dominante no mercado de ferramenta de busca, ao dar uma vantagem ilegal ao seu próprio serviço de comparação de preços, conhecido como Google shopping. Diversas outras questões aparecem quando se discute os novos mercados das economias digitais e os seus impactos na livre concorrência, tais como cartéis praticados entre empresas por meio da utilização de computadores/algoritmos, o emprego do big data para determinar o perfil do consumidor e direcionar vendas de produtos ou serviços, a diferenciação ou discriminação de preços feita por sistemas que definem o perfil do consumidor e a disposição do mesmo em adquirir determinado produto ou serviço. Outrossim, surgem outros desafios como quais os métodos a empregar nas análises de concentrações econômicos onde o produto tem custo zero (exemplo aplicativos "gratuitos"), que inviabiliza o teste do monopolista hipotético para avaliar os efeitos monopolísticos da concentração entre empresas, bem como qual deve ser o papel da autoridade de concorrência, pois se por um lado é muito intervencionista, pode restringir a livre iniciativa e atravancar o progresso tecnológico, e por outro lado, se muito permissiva pode consentir na criação de grupos econômicos tão fortes e colossais que subjugarão a livre concorrência e o bem-estar social. É, pois, neste dilema que também se encontra a política de concorrência nacional e o Cade, cujo protagonismo lhe foi atribuído pela Lei de Concorrência, devendo definir a sua estratégia para um futuro já em curso; limitar-se a abrir processos por meio de acordos de leniência e conduzi-los com a celebração dos chamados termos de cessação de conduta, ou estar apto a enfrentar os desafios das economias digitais, muitas vezes retratados em casos de condutas unilaterais que demandam uma análise maior e mais detalhada na matéria concorrencial. Evidentemente, uma coisa não deve excluir a outra e, inclui-se, ainda, a análise de atos de concentração complexos.

Vicente Bagnoli e Maria Fernanda Madi são, respectivamente, professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Law & Economics pela Erasmus University Rotterdam, ambos integram o Grupo de Estudos de Direito da Concorrência da Faculdade de Direito Mackenzie e o escritório Vicente Bagnoli Advogados

 

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Valor econômico, v. 17, n. 4314, 08/08/2017. Legislação & Tributos, p. E2.