STF pode decidir hoje futuro de comunidades quilombolas

Beatriz Olivon e Daniela Chiaretti

16/08/2017

 

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) pode decidir hoje um conflito de terras histórico que aguarda há 13 anos para ser julgado. Os ministros vão analisar uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) proposta pelo Democratas (DEM) contra o Decreto nº 4.887, de 2003, que regulamenta a identificação, demarcação e titulação de terras ocupadas por quilombolas. A argumentação do DEM concentra-se na forma como a regulamentação foi feita. O partido alega que o decreto invade esfera reservada à lei e disciplina procedimentos que representarão aumento de despesa, como a determinação de desapropriação pelo Incra de áreas em domínio particular para transferi-las às comunidades quilombolas. Segundo o DEM, seria inconstitucional a atribuição fixada no decreto para identificar remanescentes de quilombos e caracterizar terras que seriam reconhecidas a essas comunidades. "Esta decisão pode representar um retrocesso histórico", diz a professora Givânia Silva, quilombola de Conceição das Crioulas, em Pernambuco e liderança da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). "Pode negar um direito que historicamente foi negado, que só a Constituição reconheceu e que sequer foi acessado por todos", acrescenta. O tema opõe quilombolas e ruralistas. Há 25 amicus curiae (partes interessadas) que participam da ação, entre institutos de direitos humanos, grupos que representam quilombolas e confederações da indústria e da agricultura.

O julgamento será retomado com o voto-vista do ministro Dias Toffoli. Já há dois votos. O relator, ministro Cezar Peluso, hoje aposentado, votou pela procedência da Adin, ou seja, pela inconstitucionalidade do decreto. No voto, ele modulou os efeitos da decisão (fez uma limitação temporal para definir a partir de quando o decreto não valeria mais) para declarar válidos os títulos das áreas emitidos até a data do julgamento com base no Decreto 4.887, de 2003. Já a ministra Rosa Weber havia votado pela constitucionalidade da norma. De acordo com a ministra, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) reconhece a propriedade definitiva da terra aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando as propriedades. O dispositivo é autoaplicável, segundo a ministra, por isso, o decreto não invade competência do Poder Legislativo. A norma apenas traz regras administrativas para dar efetividade a um direito assegurado na promulgação da Constituição de 1988. No voto, a ministra afirmou ainda que as comunidades quilombolas eram invisíveis até a Constituição. Até o fim de 2002 se conhecia pouco mais de 700 comunidades e, em levantamento de 2012, o Incra estimou em 3 mil. Dados da Fundação Palmares citados pela ministra em seu voto indicavam 34 mil famílias. Hoje existem 162 territórios titulados no Brasil. A demanda da Conaq é por cerca de 5 mil territórios quilombolas, totalizando 16 milhões de pessoas. Existem dois mil processos abertos no Incra para reconhecimento.

Apesar de favorável, o voto da ministra traz uma limitação, segundo Daniel Sarmento, advogado e professor e coordenador da Clínica de Direitos Fundamentais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). De acordo com Rosa Weber, só poderiam ser considerados quilombolas os grupos que estivessem nas terras em 1988, o que limitaria a distribuição. Segundo Sarmento, que atua em ações semelhantes no Estado e participou da elaboração do parecer da Procuradoria-Geral da República nesse caso, a ação proposta pelo DEM é "equivocada", tendo em vista o ADCT 68. O decreto apenas regulamenta a forma como seria feita a distribuição de terra, com indicação dos procedimentos necessários, diz o advogado. "O decreto concretiza tratados internacionais de direitos humanos que estão em vigor no Brasil, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)." Se os ministros decidirem pela inconstitucionalidade, apesar da previsão da ADCT, vai faltar a regulamentação para titular as terras quilombolas, o que teria que ser feito pelo Congresso. "Esse tema de direito à terra iria esbarrar na bancada ruralista do Congresso", lembra o advogado. "A iniciativa demonstra o quanto a disputa do território brasileiro está cada vez mais grave e agressiva. E o quanto se inviabilizam todos os outros usos da terra que são culturais, que mantêm a biodiversidade, que fazem uso adequado da água e das florestas", diz Milene Maia Oberlaender, assessora do programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA). O futuro das 328 Unidades de Conservação federais e centenas de estaduais no Brasil também pode ser decidido esta semana pelo STF, que julga outras duas Adins que tratam dos atos de criação, recategorização, ampliação, redução e desafetação de áreas protegidas.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4320, 16/08/2017. Legislação & Tributos, p. E1.