O Estado de São Paulo, n. 45204, 23/07/2017. Política, p. A10.

 

Maconha de farmácias uruguaias é esnobada por quem pode pagar clubes

Murillo Ferrari

23/07/2017

 

 

Uruguai. Erva que passou a ser vendida em drogarias é a alternativa barata para quem pretende evitar o narcotráfico, mas perde terreno entre os usuários que podem gastar até três vezes mais para se associar em cooperativas ou ter o próprio cultivo em casa

 

 

Após 15 anos na área de marketing de uma multinacional de tabaco, o uruguaio Joaquín Fonseca largou a profissão para ir em busca de outro sonho relacionado ao fumo. Fundou um clube para o cultivo cooperativo da maconha, uma das formas legais de produzir a droga de acordo com a lei de 2013. Quatro dias atrás, seu clube ganhou a “concorrência” das farmácias, que passaram a vender a erva a usuários com perfil econômico bem diferente.

Em agosto de 2014, Fonseca pediu demissão e, com 15 sócios, criou o Clube Cananico Sativa, que hoje ocupa grande parte de um prédio de arquitetura tradicional perto do turístico Parque Rodó, em Montevidéu. A lei uruguaia estabelece que os clubes só podem funcionar se tiverem de 15 a 45 pessoas.

“Agora que nosso funcionamento está estabilizado fazemos as entregas mensais para os membros no máximo permitido pela lei (40 gramas por mês) e com a possibilidade de escolherem entre algumas das genéticas que cultivamos – em média, seis – a cada ciclo da planta”, disse Fonseca ao Estado na semana passada. Ele ressalta que nos primeiros meses o crescimento da empresa foi tão rápido que precisou aprender muito sobre o cultivo da erva.

Quando a droga passou a ser vendida em farmácias, entrou em vigor a terceira e última etapa da lei aprovada no governo de José “Pepe” Mujica. As outras duas, em funcionamento desde 2014, são justamente o cultivo coletivo ou a plantação na residência, modalidade que tem feito alguns brasileiros se mudar e regularizar sua situação no país vizinho para viver com e da maconha (mais informações na página A11). Cada usuário registrado no sistema do governo só pode optar por um dos três tipos de fonte de maconha. Quem é sócio de um clube não pode comprar nas farmácias ou cultivar em casa, por exemplo.

No clube dirigido por Fonseca, onde ficam a sala de secagem e o depósito do produto pronto para ser entregue aos sócios, o cheiro da erva é tão forte que pode ser sentido da calçada. Esse aroma é proporcional à potência do produto, que o cultivador estima ter entre 12% e 18% de THC, o princípio ativo da maconha, e pouca quantidade de canabidiol (que inibe efeitos psicoativos e está presente na variedade que o governo envia às farmácias).

“Essa produção que alcançamos, aliada a uma qualidade incomparável em relação à droga prensada vendida pelos traficantes (normalmente originária do Paraguai e misturada com produtos para baratear o custo de produção) fez o clube se desenvolver”, disse Fonseca. Ele explica que seu clube oferece apoio técnico a outras duas agremiações, ambas com mais de 30 membros cada.

Martin, um dos sócios do Cananico Sativa, explicou que escolheu esta modalidade para obter sua maconha de forma legal porque foi a que mais se encaixou na sua realidade. “Eu não tinha condições de plantar na minha casa e a venda nas farmácias, cujo início foi adiado muitas vezes, não me convencia. Então optei por um clube do qual tinha ouvido falar bem tanto do ponto de vista do cultivo quando da gestão”, disse.

De acordo com dados oficiais do Instituto de Regulação e Controle de Cannabis (Ircca), o Uruguai conta hoje com 63 clubes de cultivo de maconha legalizados. O órgão, no entanto, não divulga quantos membros cada organização possui. Considerando as regras de funcionamento, é possível afirmar que são no máximo 2.835 os que aderiram a essa forma de acesso à droga, o equivalente a quase 19% do total de registros.

Ser membro de uma destas organizações tem um custo elevado quando comparado com a droga disponível ilegalmente no país e também com a oferecida agora nas farmácias. Na maioria dos casos, é mais caro também do que ter a própria plantação em casa, a escolha de 45% dos registrados no Uruguai.

Em um país onde o salário mínimo é de 11.150 pesos (R$ 1.222) por mês, o custo para adquirir as 40 gramas de maconha em um clube pode chegar a 4.800 pesos (R$ 526), enquanto que o cultivo em casa é similar, em torno de 4.500 pesos (R$ 493) – mas sem considerar os gastos para adquirir equipamentos como lâmpadas e estufas.

Estas opções são três vezes mais caras que a última implementada, a venda em farmácias, opção de 36% dos registrados. Um residente do país que comprar a quantidade máxima da substância permitida por mês nas drogaria gastará cerca de 1.496 pesos (R$ 164), valor similar ou um pouco mais barato do que do mercado negro.

Um estudante de 19 anos que estava entre os compradores em uma das farmácias de Montevidéu na semana passada disse que a dificuldade de comprar o produto legalizado pode atrapalhar a adoção pelos consumidores, mas o baixo preço – segundo ele, quase metade do que pagou por quantidade equivalente em sua última compra ilegal – “pode ter mais peso nesta balança”.

 

Relativo

“A entrada dos usuários no mercado legal pelas farmácias é importante pelo impacto na saúde dos consumidores, mas também pode ser uma oportunidade para que futuramente se interessem pelo autocultivo ou pelos clubes especializados”

Joaquín Fonseca

FUNDADOR DE CLUBE DE CULTIVO

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No Brasil, poucos projetos e regulamentação distante

Igor Gadelha

23/07/2017

 

 

Apenas dois projetos para liberar produção, venda e consumo da maconha tramitam no Congresso Nacional

 

 

No Brasil, são poucos os projetos parlamentares liberando a comercialização da maconha. No Congresso, há dois em tramitação: um do ex-deputado Eurico Junior (PV-RJ) e outro do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ). Em linhas gerais, as propostas regulamentam plantação, cultivo, colheita e comercialização da maconha e seus derivados, bem como a fiscalização desses processos.

Wyllys apresentou o projeto em março de 2014. Ele estabelece que a cannabis, nome científico da maconha, seus derivados e produtos deixam de integrar a lista de substâncias sujeitas a controle especial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e passam a ter regras próprias. A proposta autoriza, em condições especiais, a produção e o comércio da maconha.

O projeto prevê que cada brasileiro possa plantar, cultivar e colher em casa seis plantas maduras e seis imaturas, desde que sejam destinadas ao consumo pessoal ou compartilhadas em domicílio, sem necessidade de registro, inspeção e fiscalização por parte do Ministério da Agricultura. Sobre o produto da plantação, estaria isento de fiscalização o limite de até 480 gramas por indivíduo por ano.

Quantidades acima disso deverão ser plantadas por clubes de “autocultivadores”, que precisam de autorização do Executivo. Segundo o projeto, cada clube poderá ter até 45 sócios e plantar até 12 plantas por sócio, totalizando máximo de 540, sendo metade delas madura e metade imatura. Esses clubes poderiam vender maconha no varejo respeitando o limite de 40 gramas mensais por pessoa.

O projeto de Wyllys tramita em conjunto com o de Eurico Junior. A proposta do ex-deputado autoriza plantação, cultivo, colheita e comercialização para fins de pesquisa científica, elaboração de produtos terapêuticos de uso medicinal e para fins recreativos não só da cannabis, mas de qualquer planta da qual possam ser extraídas substâncias que causem dependência física ou psíquica, desde que sigam regras específicas.

No caso da maconha, a proposta autoriza a plantação, cultivo e colheita em ambiente doméstico de cannabis, desde que destinada ao consumo individual ou coletivo dentro do lar. Considera-se cannabis psicoativa aquela cujo conteúdo de THC natural, principal substância psicoativa da planta, seja igual ou superior a 1% de seu volume. O projeto limita o plantio a seis plantas e o produto da plantação a 480 gramas por ano.

A proposta do deputado do PSOL estabelece que a venda de maconha cultivada para consumo pessoal dependerá de registro junto aos órgãos competentes. A venda não poderá ultrapassar 40 gramas por usuário por mês. Menores de 18 anos e pessoas incapazes não poderão comprar. O projeto estabelece que motoristas não poderão dirigir sob a influência da maconha.

Há ainda um terceiro projeto, do deputado Fábio Mitidieri (PSD-SE), que autoriza a comercialização de medicamentos que contenham “extratos, substratos ou partes” da cannabis ou derivados, desde que exista comprovação da eficácia terapêutica atestada por laudo médico. Pelas regras da Anvisa, hoje só podem ser comercializados remédios com concentração de até 30 mg/ml de canabidiol e THC.