Soma de irresponsabilidades

Antonio Delfim Netto

22/08/2017

 

 

A aguerrida resistência de boa parte do Congresso às mudanças necessárias para voltarmos a um desenvolvimento econômico robusto e inclusivo é, às vezes, levada à dignidade de diferenças "ideológicas". Ledo engano: é apenas irresponsabilidade aritmética. Creem que é no orçamento que se criam os recursos, enquanto os "caretas" sabem, porque é assim que funciona o mundo, que são os recursos que limitam o orçamento! Vinte anos de Congresso me ensinaram que, no tumulto do plenário (menos nas comissões), a lógica "reacionária" de Aristóteles é o pior instrumento para convencer um "progressista". Não há a menor hipótese de se conquistar o voto que se pensa "progressista", cuja voz atinge altos decibéis e pensa que o grito supera a aritmética. Resta apenas vencê-lo com dois votos de quem sabe o que é a regra de três. Mesmo que a esperança seja vã, cremos que vale mais um esforço para capturar um incauto "progressista".

(...)

Comecemos tentando dar carne e osso ao indicador geral (macroeconômico) da economia que chamamos de PIB. Num período de tempo convencional ele é a soma dos valores adicionados em todo processo produtivo. E o que é o "valor adicionado"? É o total monetário do valor comercializado de qualquer bem ou serviço descontado de todas as compras de bens ou serviços para produzi-lo. Por exemplo, o "valor adicionado" de um par de sapatos é igual ao seu preço descontado de todas as compras feitas para produzi-lo. O que sobra quando fazemos isso? Apenas o salário dos trabalhadores e o lucro do produtor. No final, o PIB é o valor da soma de todos os salários e de todos os lucros realizados em todo o processo produtivo, medidos na unidade de valor do período. Vamos chama-lo de (Y). Que uso pode fazer a sociedade do que foi produzido (Y)? Para organizar suas ideias, os economistas construíram a Contabilidade Nacional, que o divide em consumo das famílias (C), investimento (I), consumo do governo (G) e exportação (X), da qual se subtraem as compras externas, as importações (M). Trata-se da conhecida mas muito maltratada identidade convencional: Y = C + I + G + (X - M). Por exemplo, aos preços nominais de 2016, o IBGE calculou que nosso PIB foi igual a R$ 6,27 trilhões, assim utilizados (...):

Para avaliar a evolução das quantidades de bens e serviços ao longo dos anos, calcula-se o PIB de cada ano, com os preços de um ano-base. O IBGE faz isso com os preços de 1995. Com isso damos concretude física à evolução da quantidade de bens e serviços posta à disposição da sociedade. Ele mede o desenvolvimento econômico. Para entender o "imbróglio" que estamos vivendo, basta lembrar que nas últimas duas décadas o PIB físico cresceu à ridícula taxa anual de 2,2% ao ano, acumulando um crescimento de 55%. Ficamos relativamente mais pobres, porque o mundo cresceu cerca de 77% no mesmo período. Esse é um problema menor, diante do fato de que, no período, a despesa real do governo cresceu a 5,4% ao ano, acumulando o fantástico crescimento de 180%! Aumentamos sistematicamente o consumo e reduzimos o investimento do governo, prejudicando duplamente o nosso crescimento: 1º) estamos consumindo nossa infraestrutura; e 2º) dissipamos recursos sem razão plausível. Por exemplo, demos ganhos de produtividade aos aposentados e pensionistas (a quem deveríamos, apenas, manter constante o seu poder de compra), em lugar de aplicá-los no aumento da produtividade dos que estão na atividade e que devem sustentá-los. É inegável, também, que nas últimas duas décadas conseguimos o que parecia impossível: a estabilização monetária e alguma melhoria distributiva. O final, entretanto, é dantesco: a maior recessão da nossa história, um desequilíbrio fiscal inimaginável, com o amargo tempero de 14 milhões de desempregados. Isso autoriza três conclusões:

1ª) o crescimento robusto do PIB é a condição necessária para realizar as políticas sociais civilizatórias implícitas na Constituição de 1988, até agora sujeitas a idas e vindas;

2ª) ao "populismo" oportunista sempre faltará fôlego se não insistir no investimento e na exportação, mas pode até beneficiar-se de alguma sorte no curto prazo. Distribuir judiciosamente ganhos eventuais nas relações de troca é inteligente e razoável, mas esquecer que são passageiros contém em si uma tragédia anunciada. Os fracassos do "populismo" no mundo nos últimos 70 anos, em todas as suas experiências, são uma prova empírica indisputável de sua insustentabilidade; e

3ª) o verdadeiro crescimento sustentável requer um consistente aumento da produtividade do trabalho e toda evidência empírica revela que esta é função da quantidade e qualidade de capital à disposição de cada trabalhador e do tamanho do mercado.

Estamos reduzindo o nosso estoque de capital. Logo, estamos num processo de subdesenvolvimento! A saída é voltar a ser colônia, o que, infelizmente, é cada vez mais evidente...

 

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras

 

E-mail: ideias.consult@uol.com.br

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4324, 22/08/2017. Brasil, p. A2.