O globo, n.30725 , 20/09/2017. ARTIGOS, p.19

 As razões do juiz

ROBERTO FEITH
 

 

A lista de políticos presos revela uma gritante desigualdade. Sérgio Cabral, Antonio Palocci, Eduardo Cunha e Geddel Vieira Lima estão atrás das grades. Renan Calheiros, Gleisi Hoffmann, Aécio Neves, Fernando Collor, Romero Jucá e dezenas de outros, indiciados ou réus por corrupção, estão livres. A diferença é o foro privilegiado. Os da primeira lista não tinham foro quando detidos. Os da segunda têm o privilégio. Eles e mais 30 mil ou 40 mil indivíduos, dependendo do cálculo. Ninguém sabe ao certo quantas pessoas têm foro privilegiado no Brasil, mas, certamente, é um recorde mundial.

Existe amplo consenso de que a forma como o foro especial é aplicado entre nós é não só desigual, como um fator gerador de impunidade. O Supremo Tribunal Federal, concebido para dirimir questões relativas à interpretação das leis, está se tornando uma vara criminal para políticos. Hoje, tramitam no Supremo mais de 500 processos contra indivíduos com foro privilegiado. Alguns, há mais de uma década. O indefectível Renan Calheiros responde a 12 processos. O mais antigo tem dez anos na Corte.

O próprio Supremo é consciente do impacto nocivo do foro especial. Em maio, o STF analisou uma proposta que restringe a sua validade aos delitos cometidos no exercício do cargo. A lógica desta interpretação é irretocável. O foro privilegiado foi criado para proteger o livre exercício de determinadas funções públicas, e não, irrestritamente, o indivíduo que exerce a função.

A alteração faria toda a diferença. Estima-se que, uma vez aprovada, 90% dos processos com foro especial seriam enviados à primeira instância. Isto não só resultaria na tramitação mais rápida destes processos, como desafogaria o Supremo, permitindo maior celeridade nos 10% dos processos com foro remanescentes. A mudança encontra respaldo na opinião pública e no próprio Supremo. No dia da sua apreciação, recebeu quatro votos favoráveis e nenhum contrário. A votação não foi concluída porque o ministro Alexandre de Moraes pediu vista.

O ministro Moraes é o mais novo membro do Supremo. Foi indicado por Michel Temer para substituir Teori Zavascki, morto em acidente aéreo. Desde que chegou ao tribunal, não se tem feito notar. A maior marca da sua presença foi interromper a mudança no foro especial, que parecia iminente.

O argumento de Moraes para justificar o seu pedido de vista foi que a mudança em discussão afetaria “um complexo de garantias que têm reflexos importantíssimos... A alteração de uma coisa é mais ou menos como aquele jogo de varetas. Ao mexer uma vareta, você mexe as demais.”

Alexandre de Moraes não revelou precisamente que “reflexos importantíssimos” seriam gerados pela limitação do foro. Mas vamos dar ao mais novo ministro do Supremo o benefício da dúvida. Vamos imaginar que ele tivesse uma questão legítima, que preferiu não detalhar, para suspender a votação. Neste caso, uma pergunta se impõe: o que está impedindo o ministro de fazer a sua análise? Lá se vão quase quatro meses desde que ele interrompeu a decisão sobre a matéria. Quanto tempo o ministro Moraes precisa para concluir um juízo que seus pares, ao que tudo indica, não têm dificuldade em formular?

As ações de Alexandre Moraes suscitam a possibilidade de que sua intenção não era analisar o tema em profundidade, mas obstruir a aprovação de medida que aproximaria centenas de políticos acusados de corrupção do braço da lei. Confirmada esta hipótese, seria mais um exemplo de um ministro do Supremo que age mais como político, do que como juiz. Um político defendendo os interesses de seus colegas e parceiros. Neste imenso jogo das varetas que é a luta contra a corrupção e a impunidade, já passou da hora de o ministro Alexandre mover a sua peça. Ou ficará claro que a sua intenção é tão somente melar o jogo.

 

*Roberto Feith é jornalista