MARTA SZPACENKOPF
RAYANDERSON GUERRA
RENATO GRANDELLE
19/09/2017
Uma decisão judicial fez o Brasil recuar 27 anos e considerar a homossexualidade uma doença, classificação que perdeu em 1990 por decisão da Organização Mundial de Saúde (OMS). A liminar expedida pelo juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho autoriza psicólogos a oferecerem terapias de reversão sexual, que ficaram conhecidas como “cura gay”. A medida provocou a indignação do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que vai recorrer da decisão, uma “violação dos direitos humanos sem qualquer embasamento científico”, segundo a entidade.
De acordo com a liminar, a resolução 01/99 do conselho — que orienta os profissionais da área a atuarem nas questões relativas à orientação sexual — interfere no atendimento a pacientes que procuram assistência relacionada ao tema, “proíbe o aprofundamento dos estudos científicos relacionados à (re)orientação sexual, afetando, assim, a liberdade científica do país e, por consequência, seu patrimônio cultural, na medida em que impede e inviabiliza a investigação de aspecto importantíssimo da psicologia, qual seja, a sexualidade humana”. Por meio de assessoria de imprensa, o juiz informou que não daria entrevistas.
Entre os autores da ação está Rozangela Justino, que oferecia tratamentos para “cura” de homossexuais, teve o registro cassado no ano passado pelo CFP e está proibida de exercer a profissão de psicóloga. Rozangela não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem por e-mail até o fechamento da edição.
INTROMISSÃO DO JUDICIÁRIO
Presidente do CFP, Rogério Giannini destaca que, nos últimos cinco anos, a entidade julgou 260 processos disciplinares éticos. Apenas três — ou seja, 1,15% do total — podem ter relação com a norma da resolução 01/99. Giannini considera a decisão da Justiça Federal “estranha”, já que o conselho não exerce controle sobre pesquisas acadêmicas — portanto, não pode ser acusado de proibir estudos sobre qualquer tema.
— O Judiciário não pode dizer como se deve interpretar as normas de um conselho responsável por regulamentar o exercício de uma profissão — critica. — Oferecer tratamento para a homossexualidade, que não é uma doença, só aumenta a exclusão de uma parte da população e a violência sexual, e o Brasil já é campeão em crimes ligados à homofobia. Os psicólogos se recusam a ser chamados para reforçar o preconceito.
Para Giannini, os defensores da cura gay confundem discurso religioso e científico e incentivam as pessoas a recorrerem a “terapias” sem eficácia comprovada. Uma pesquisa da Associação Americana de Psicologia revelou que pacientes que se sujeitam a supostos tratamentos de mudança de orientação sexual registraram sintomas como depressão, confusão mental, ansiedade e pensamentos suicidas.
Presidente da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB-RJ, Raquel Castro sublinha que a medida judicial contraria a resolução da OMS e que, por isso, logo será derrubada.
— A homossexualidade não é uma doença. O juiz ultrapassou todos os limites, porque está tentando se sobrepor ao que diz a medicina — avalia. — Não acredito que a população se identifique com esta medida homofóbica. Estamos vivendo um momento de tolerância e aceitação da diversidade sexual. A liminar é uma tentativa de uma minoria barulhenta de impor um retrocesso social.
A professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro, Jaqueline Gomes de Jesus, concorda:
— A interferência em nossa atividade ignora que a heterossexualidade é estudada há décadas pelos cientistas, e que seu debate foi iniciado pela própria população — assinala. — A psicologia moderna se baseia em experimentos e no método científico. Não trabalhamos com estereótipos.
CRÍTICA NAS REDES SOCIAIS
A decisão judicial foi amplamente criticada nas redes sociais. A hashtag #HomofobiaÉDoença figurou ontem entre as seis mais postadas no Twitter em todo o mundo. Um usuário afirmou: “Não é preciso ser gay, lésbica ou bi para lutar contra a homofobia. Basta ter um cérebro e uma boa dose de bom senso!!”. Segundo outra internauta, “A homossexualidade NÃO é doença. A homofobia SIM”.
Único deputado federal assumidamente homossexual, Jean Wyllys (PSOL-RJ) definiu a liminar como “aberração legal e científica” e promete apoiar o CFP na Justiça.
— Por um lado, ela (a decisão) viola a Constituição Federal e diversos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Por outro lado, significa uma intromissão indevida nas decisões do CFP. É como se um juiz tentasse “derrogar” a lei da gravidade ou decidir que a Terra é plana, ou ordenar aos médicos que passem a tratar o câncer com suco de limão e não com quimioterapia ou radioterapia — compara. — Não existe nenhuma polêmica na comunidade científica internacional sobre a homossexualidade ser uma “doença”.
Marcelle Esteves, vice-presidente do Grupo Arco Íris de Cidadania LGBT, aponta uma contradição — o sofrimento dos homossexuais estaria sendo ignorado pelos defensores da cura gay, que alegam ter interesse em seu bem-estar.
— A saúde mental de uma pessoa poder ser afetada pela homofobia. É difícil encarar a opressão social e esconder sua identidade. Mas o medo de enfrentar esta violência não é uma doença.
Por ter caráter liminar, a decisão é provisória até que se julgue o mérito, mas já tem validade plena e não há data para o julgamento definitivo. O recurso será analisado por um desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que poderá referendar a liminar ou derrubá-la.