Crise fiscal 'engole' programas sociais de Estados

Luciano Máximo, Marina Falcão, Marcos de Moura e Souza e Bruno Villas Bôas

25/08/2017

 

 

Num momento de crise econômica dramática, com mais de 13 milhões de desempregados e renda em queda, os governos estaduais deixam de dar prioridade política ao combate à pobreza para não elevar ainda mais o rombo no campo fiscal. De 2014 para cá, oito Estados acabaram com programas próprios de transferência direta de renda. Os que mantiveram essas políticas reduziram o número de famílias beneficiadas.

Levantamento do Valor mostra que mais de 400 mil famílias - quase 2 milhões de pessoas - de baixa renda, ou em situação de extrema pobreza, foram prejudicadas pelo fim de benefícios, ou enxugamento de orçamentos estaduais, em cerca de R$ 500 milhões anualmente. O movimento segue tendência do Bolsa Família, no âmbito federal, que expurgou 1,3 milhão de famílias entre 2014 e 2017.

Os casos mais expressivos vêm de dois dos Estados mais problemáticos quando o assunto é descontrole das contas públicas: Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Ambos decretaram fim dos programas de transferência de renda que ajudavam a complementar o benefício do Bolsa Família de quase 200 mil famílias pobres.

O Renda Melhor, criado em 2011 para combater a pobreza extrema no Rio de forma integrada ao Bolsa Família, foi suspenso em junho de 2016. O governo do Estado culpou problemas de realização de receitas, queda dos royalties do petróleo e a inexistência de disponibilidade financeira. Com isso, 122,5 mil famílias deixaram de receber o benefício, que variava de R$ 30 a R$ 300 conforme a situação de pobreza de cada beneficiário.

De acordo com decreto do governador interino Francisco Dornelles (PP), os benefícios derradeiros deveriam ser pagos até setembro de 2016, mas o Estado deu calote nas famílias. O governo admite que a conta de R$ 152, 4 milhões referente a cinco meses está "em aberto" e que não há prazo para regularização. Mesmo antes da suspensão, o Renda Melhor já havia sofrido redução de 57% no número de famílias beneficiadas.

A história se repetiu no Rio Grande do Sul com o RS Mais Igual, principal bandeira social da gestão do ex-governador Tarso Genro (PT). A suspensão por tempo indeterminado do programa foi uma das primeiras medidas do sucessor, José Ivo Sartori (PMDB), que alega dificuldades financeiras para manter o benefício.

Também integrado ao Bolsa Família, o programa chegou a atender 100 mil famílias em todo o Estado e complementava a renda do benefício federal, de modo que o valor recebido permitisse que a renda familiar per capita superasse os R$ 85 que marcam a condição de pobreza extrema. "Nossas avaliações apontavam que as famílias atendidas estavam avançando em vários indicadores de saúde, alimentação e educação. Sem uma complementação, conquistas podem se perder", diz Paola Loureiro, ex-coordenadora do RS Mais Igual.

O governo gaúcho informou que vem investindo em outras políticas de assistência social voltadas para o combate à extrema pobreza, como cursos de capacitação profissional e geração de novas oportunidades de trabalho, acesso a serviços públicos e participação em atividades dos centros de referência de assistência social nos municípios. "Apesar disso, constatou-se enorme dificuldade de mobilizar os beneficiários em qualquer dessas atividades por causa da cessão da transferência de renda", reconheceu, em nota, o governo estadual.

Com as finanças mais arrumadas, os governos de São Paulo e do Distrito Federal mantiveram seus programas de transferência de renda. No DF, mais 10 mil famílias são atendidas atualmente em relação ao período 2014-2016, chegando a 70,8 mil lares beneficiados. Os pagamentos estaduais, porém, não estão em dia. Eles são feitos dois meses depois do recebimento do Bolsa Família.

"Sabemos da importância da nossa complementação para as famílias pobres e de todo o acompanhamento socioassistencial do programa. Importante que não houve descontinuidade. O movimento é equiparar os pagamentos do DF Sem Miséria com o Bolsa Família até o fim do ano", prevê Marlene Azevedo, secretária-adjunta de Desenvolvimento Social do DF.

O secretário estadual de Assistência Social de São Paulo, Floriano Pesaro, sustenta que é "reducionismo" avaliar o alcance das políticas sociais apenas sob a ótica da renda. Segundo ele, em São Paulo a demanda por serviços ligados à rede de proteção social do Estado aumentou durante a crise econômica, mas boa parte da população que procura o governo não se enquadra no perfil financeiro do Renda Cidadã, versão paulista do Bolsa Família.

"Não dá só para pensar em renda, reducionismo nosso pensar que uma pessoa desempregada tem renda zero. Aumentou muito, principalmente nas regiões metropolitanas, a demanda por creche, encaminhamento para serviço socioassistencial para idoso ou atividade para crianças fora do horário de aulas. Nos últimos seis meses, no entanto, boa parte das 20 mil pessoas que procuraram nossos serviços não se enquadrava no perfil do Renda Cidadã", diz Pesaro.

O secretário argumenta que o Renda Cidadã não sofreu durante a recessão, mas as leis orçamentárias anuais entre 2014 e 2017 indicam queda de 21% nos recursos do programa, para R$ 156,9 milhões, e redução de quase 30% da meta de famílias atendidas, de 222 mil para 156,2 mil. O secretário contesta os dados e informa que a meta de atendimento é de 200,5 mil famílias para este ano e que a pasta conta com margem de suplementação orçamentária já autorizada, caso o programa avance na inclusão de novas famílias beneficiárias.

Em Goiás, mais de 70 mil famílias são atendidas pelo Renda Cidadã, o programa de transferência de renda estadual que oferece benefícios de R$ 80 a R$ 160. Há três anos, eram 49 mil. Os gastos anuais do governo do Estado com a política são de R$ 60 milhões.

O aumento do desemprego e a queda na renda em todo o país tiveram efeito no aumento do número dos atendidos pelo programa goiano, mas a secretária estadual da Mulher, Igualdade Racial, dos Direitos Humanos e do Trabalho, Lêda Borges, diz que o que realmente pesou foi uma mudança nas regras da política em 2015, quando ela passou a incluir idosos e pessoas com deficiências permanentes. A meta do Renda Cidadã para 2018 é cobrir 104 mil lares, informa Lêda.

O Renda Cidadã goiano foi criado em 2000, antes de o governo Lula ter dado escala ao Bolsa Família. Desde 2015 o governo estadual também passou a estipular um limite de dois anos para que cada beneficiário fique no programa. "Diferentemente do Bolsa Família, aqui eles têm dois anos para se recolocar no mercado e nesse período o Estado o ajuda com capacitação e com parceria com o Sebrae."

Na Paraíba, o Abono Natalino complementa renda do Bolsa Família de pobres e extremamente pobres e o Proalimento dá R$ 25 mensais para compra de alimentos. De 2014 para cá, o primeiro perdeu 26,2 mil famílias por causa da crise, enquanto que o cartão alimentação registrou expansão.

Chapéu de Palha é uma política do governo de Pernambuco que beneficia trabalhadores rurais e da pesca artesanal no período da entressafra. Os beneficiários recebem até quatro parcelas de cerca de R$ 250. Nos últimos três anos, pouco mais de 5 mil famílias deixaram o programa, que tem hoje 48,4 mil beneficiários. "Essa variação negativa pode estar relacionada ao fato de que as pessoas estão tendo acesso a outras fontes de renda e também ao estabelecimento de critérios mais rigorosos no processo de cadastramento", informa o governo pernambucano.

Na avaliação da economista Lena Lavinas, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o quadro estadual na área de proteção social demonstra a debilidade do Estado brasileiro na condução de políticas de combate à pobreza.

"A lógica de cobertura do Bolsa Família e dos programas estaduais não é a necessidade da população. Evidentemente, os programas têm que expandir a oferta em momentos de crise, quando o déficit de renda das famílias é brutal, mas o foco está na disponibilidade fiscal de recursos. É um viés perverso, mostra que nossa política social é pró-cíclica: cresce quando a economia avança e se retrai na crise. Isso é absolutamente irracional e contraditório com qualquer lógica econômica e ideia de proteção social", afirma Lena.

Nas contas de Marcelo Neri, diretor da FGV Social e ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, a recessão de 2015 e 2016 empurrou 5,9 milhões de pessoas para a pobreza em todo o país. Para ele, os Estados deveriam "contar os tostões" e expandir suas redes de proteção social, o que também beneficiaria a economia.

"A cada real que o governo gasta com Bolsa Família, a economia gira R$ 1,78. Esse efeito multiplicador deve ser tão forte nos programas estaduais. Você movimenta o comércio, os serviços. Cortar os programas é um tiro no pé do pobre e também no próprio pé dos governos", diz Neri.

 

 

Valor econômico, v. 17, n. 4327, 25/08/2017. Especial, p. A14.