A natureza da colaboração premiada

Sacha Calmon

02/07/2017

 

 

O instituto da colaboração premiada tem origem nos Estados Unidos. A pena pode ser reduzida ou se tornar alternativa, porém jamais absolve o réu. Sua utilidade foi pensada para desbaratar organizações criminosas de qualquer natureza, como a máfia e os cartéis bancários em paraísos fiscais, envolvendo pessoas poderosas. Seu uso na política é indevido por causa do partidarismo que, muitas vezes, invade hostes da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Agora mesmo — esquecidos da economia do país, que precisa crescer e das reformas macro e microeconômicas, sem falar na trabalhista e a previdenciária, sem as quais o país caminha para o abismo —, as delações são até preparadas e controladas pela Polícia Federal para criar fatos delituosos pela via da soberana interpretação do inquisidor-mor, como no tempo das perseguições religiosas aos hereges e feiticeiras.

Um ministro do Supremo disse que o MP, como dono da lide, pode deixar de denunciar um delator confesso de mais de 1.800 crimes de corrupção ativa. Se todo residente no Brasil ficar sabendo de um delito e não o noticiar às autoridades, torna-se réu de crime de omissão, que, dependendo da natureza do ilícito, pode lhe render pena de reclusão, como pode alguém que exerce a função de promover a Justiça (promotor) ou procurá-la (procurador) pairar acima do justo e da lógica criminal? O procurador-geral não pode deixar de denunciar. É poder-dever constitucional indeclinável. Esse poder não pode ser negociado pela PGR.

Mas a contribuição mais importante veio do ministro Dias Toffoli: por, primeiro, definir a colaboração premiada como negócio jurídico-processual em matéria penal, sob condição e controle jurisdicional, nos momentos da homologação e do julgamento final. O ministro analisou a delação premiada à luz da teoria geral do direito, que distingue três planos jurídicos. O da existência do ato, do fato, da norma ou do negócio jurídico. O momento em que se tornam válidos, formal e materialmente (forma prescrita e conteúdo material) é o momento da eficácia (produção dos efeitos jurídicos que lhe são próprios).

Após distinguir a natureza jurídica da delação premiada (negócio jurídico-processual penal sob controle jurisdicional), aclarou que a delação não é prova, mas mero veículo para obter provas. Como não é prova a contabilidade mercantil, senão meio para eventual prova, com a diferença de que, na delação, a prova ou o início da prova é obrigação do delator, sob pena de ineficácia.

Em seguida, enquadrou a delação nos momentos da existência (no caso, seu fechamento pela PGR) e na validez jurídica, quando homologada pelo magistrado competente para tanto, segundo a lei, e no momento de sua eficácia, quando do julgamento final do processo, momento no qual é possível conferir as declarações e as provas decorrentes contidas na delação. E mais: somente nesse momento é possível fazer a dosimetria, segundo parâmetros prévios dos benefícios penais prometidos, sob condição, ao delinquente delator, que não merece nenhum respeito ético, pois se trata, digo eu, de um criminoso desprezível. Suponha-se um caudaloso delator mentiroso. É lógico ou justo ser absolvido a priori pela PGR, à revelia do Judiciário? Por isso, foram tão elogiadas as razões de decidir do ministro Dias Toffoli.

O ministro Gilmar Mendes se houve bem ao dizer que, se a absolvição prévia do bandido delator, homologada pelo ministro relator, mesmo sendo inútil, não pode ser alterada para que a turma ou o pleno julgue o bandido delator? Que lhe dê absolvição monocrática o juiz homologador. Tem lógica! Mas a fala, a meu sentir, mais contundente foi a do ministro Marco Aurélio Mello ao assentar que transferir o poder de absolver o réu de pena, antes do processo, para a polícia, ou para o MP, ao se negociar a delação do traidor, significaria a subordinação — no caso — da Corte Suprema a órgãos não judicantes. No ponto, o ministro Toffoli, quando da homologação de certa delação de um empreiteiro, fê-la voltar ao MP, para que corrigisse  abusos e equívocos. O mesmo posicionamento teve o ministro Lewandowski, ciente do papel do magistrado tanto no ato homologatório, quanto no exame dos elementos obtidos de influenciar a dosimetria dos benefícios.

Nesse ponto, não pode o STF transigir, alhear-se, apequenar-se perante o MP ou a polícia. A validade, a eficácia e a dosimetria dos benefícios em matéria penal são funções que somente os juízes podem exercer. Delação mentirosa é nenhuma, do contrário seria um non sense, liberdade comprada incondicionalmente. Silentes, observam as ruas o STF. Ao cabo, estamos fazendo história. Pelo que se vê e ouve, o desencanto da população relativamente às Instituições da República é crescente.

(...)

 

SACHA CALMON

Advogado

 

 

Correio braziliense, n. 19759, 02/07/2017. Opinião, p. 11.