O globo, n.30720 , 15/09/2017. PAÍS, p.3

O COMANDANTE - ‘O HOMEM CORROMPE O PODER’

VINICIUS SASSINE

RENATA MARIZ

15/09/2017

 

 

Janot denuncia Temer e sustenta que presidente chefia grupo criminoso de dentro do Palácio do Planalto

Michel Temer passou a liderar uma organização criminosa desde o primeiro momento em que se sentou na cadeira de presidente da República, ainda como interino, e o grupo que ele comanda continua praticando crimes. A acusação é do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, na segunda denúncia apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra um presidente no exercício do cargo. A primeira também alvejou Temer, que, na ocasião, contou com um dos pontos fortes de seu governo para sair ileso da acusação de corrupção passiva: a blindagem no Congresso Nacional. A nova denúncia, para prosperar, terá de contar, mais uma vez, com o aval de dois terços dos deputados federais.

Janot enviou a acusação de 245 páginas ao STF no fim da tarde de ontem, num dos últimos atos de seu mandato à frente da Procuradoria Geral da República (PGR) — hoje é o último dia útil desta gestão, que será substituída pela de Raquel Dodge a partir da próxima segundafeira. Temer é acusado de liderar uma organização criminosa, formada por integrantes ligados ao PMDB da Câmara, e de obstruir os trabalhos da Justiça, ao supostamente tentar barrar a delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, operador de esquemas do partido na Casa.

Na noite de ontem, o ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), anunciou que irá aguardar o julgamento da questão de ordem apresentada pela defesa de Temer contra a apresentação da denúncia, antes de remeter o caso para apreciação da Câmara dos Deputados. O julgamento da questão de ordem no STF está previsto para ocorrer no próximo dia 20.

Integram a organização criminosa, segundo o procurador-geral, outros seis denunciados, todos do PMDB: Eliseu Padilha, ministro da Casa Civil da Presidência da República; Moreira Franco, ministro da Secretaria Geral da Presidência; Eduardo Cunha e Henrique Eduardo Alves, ex-presidentes da Câmara; Geddel Vieira Lima, ex-ministro da Secretaria de Governo da Presidência; e o ex-deputado Rodrigo Rocha Loures, o “deputado da mala”. Os dois primeiros dão expediente no Planalto e são os homens fortes de Temer. Os três seguintes estão presos preventivamente. O último, em prisão domiciliar em Brasília, monitorado por uma tornozeleira eletrônica. Delatores de esquemas criminosos usados na denúncia, os executivos do grupo J&F Joesley Batista e Ricardo Saud também foram denunciados, por obstrução de justiça.

A peça acusatória de Janot foi aberta com a referência a um discurso de Ulysses Guimarães, que foi a principal figura do PMDB: “O poder não corrompe o homem; é o homem que corrompe o poder. O homem é o grande poluidor, da natureza, do próprio homem, do poder. Se o poder fosse corruptor, seria maldito e proscrito, o que acarretaria a anarquia”.

 

NÚCLEO DA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA

O núcleo político da organização criminosa era composto também por integrantes de PP e PT, além de integrantes do PMDB no Senado, como afirma o procurador-geral. Em maio de 2016, com o afastamento temporário de Dilma, o grupo do PMDB da Câmara — “especialmente Michel Temer” — passou a ocupar papel de destaque devido à ascensão de Temer ao poder.

De acordo com Janot, Temer atuou como “líder da organização criminosa desde maio de 2016”. O vice-presidente virou presidente interino em 12 de maio do ano passado, após afastamento provisório da presidente Dilma Rousseff em razão do processo de impeachment. A deposição definitiva de Dilma fez de Temer presidente efetivo a partir de 31 de agosto. “Além do embaraço, foram descritos vários outros fatos ilícitos que demonstram que a organização criminosa continua a operar”, afirma o procurador-geral.

Como líder da organização criminosa, a atuação de Temer perpassa por praticamente todas as áreas em que atuou o “quadrilhão” do PMDB da Câmara para arrecadar propina, conforme a narrativa da denúncia. O grupo recebeu subornos de R$ 587 milhões por atuações na Petrobras, Furnas, Caixa Econômica Federal, Ministério da Integração Nacional, Ministério da Agricultura e Câmara dos Deputados.

Padilha, Geddel, Henrique, Moreira e Loures serviram como “escudo” para Temer, segundo a denúncia. Enquanto o grupo tratava mais especificamente dos pagamentos de propinas, cabia ao presidente negociar os cargos junto aos demais membros do “núcleo político da organização criminosa”, aponta Janot.

“Michel Temer dava a necessária estabilidade e segurança ao aparato criminoso, figurando ao mesmo tempo como cúpula e alicerce da organização”, diz trecho da denúncia. Essas características eram apreciadas pelo núcleo empresarial da organização, que “poderia contar com a discrição e, principalmente, a orientação de Michel Temer”.

A denúncia se ancora em diversas delações, em especial dos executivos da Odebrecht, do grupo J&F e do operador Lúcio Funaro. Perpassa pelos mais diferentes esquemas desvendados ao longo da Operação Lava-Jato e traz provas — como registros de transações e gravações — entregues por Funaro e por Joesley, inclusive as decorrentes de ações controladas da Polícia Federal (PF). Relatórios de análise produzidos pela PF e pela própria PGR também embasam a acusação.

Para acusar o presidente de ter obstruído a Justiça, o procurador-geral detalha o episódio da tentativa de compra de silêncio de Funaro, em que teria havido aval de Temer a pagamentos de Joesley ao doleiro. “Temer instigou a ideia (...), no subsolo do Palácio do Jaburu“, diz Janot. Joesley ofereceu a Funaro em 2015 um contrato de R$ 100 milhões, com efetivação de pagamentos mensais de R$ 400 mil a R$ 600 mil ao doleiro e seu entorno — Temer incentivou a continuidade dos pagamentos, conforme a narrativa da denúncia.

A PGR mapeou contatos telefônicos entre os “liderados” por Temer com o empresariado da construção civil, grande responsável pela produção de caixa dois de campanha e pelos pagamentos de propina. De 2012 a 2014, houve 1.723 registros de ligações e mensagens de texto entre o terminal atribuído a Léo Pinheiro, dono da OAS, e o vinculado a Geddel, por exemplo. Uma média de 1,5 contatos por dia.

Uma das maiores fontes de propina ao “quadrilhão” do PMDB da Câmara, conforme a denúncia, foi o esquema de desvios a partir de empréstimos do FI-FGTS a grupos empresariais. “Funaro, Henrique e Temer passaram a arrecadar propina também a partir de contratos de financiamento vinculados ao cargo de Geddel.

No caso de Henrique e Temer, a participação se dava em razão do apoio dado por eles para que Geddel fosse nomeado e se mantivesse na Caixa”, diz trecho da denúncia. Geddel foi vice-presidente de Pessoa Jurídica da Caixa entre 2011 e 2013, nomeado por Dilma.