O Estado de São Paulo, n. 45225, 13/08/2017. Política, p.A12

 

Berço da Lava Jato vê divórcio entre PF e procuradores

Esvaziamento da equipe da corporação em Curitiba e embate sobre acordos de delação premiada estão entre os motivos do afastamento

Por: Ricardo Brandt / Julia Affonso / Luiz Vassallo

 

A parceria entre Polícia Federal e Ministério Público Federal na Operação Lava Jato, em Curitiba, entrou no seu momento mais crítico. O esvaziamento da equipe policial que iniciou as apurações do caso de corrupção na Petrobrás e os desentendimentos sobre acordos de delação premiada afastaram os dois principais polos do grupo de investigação, que reúne PF, MPF e Receita Federal.

Desde o início do ano, reuniões entre delegados e procuradores para discutir a investigação, que eram feitas com frequência – ora semanais, ora quinzenais –, não ocorrem mais.

O fim do grupo de trabalho da Lava Jato na PF, anunciado em julho, e a chegada de um novo delegado para coordenar os trabalhos também agravaram os desentendimentos de policiais com a Procuradoria. Para representantes do MPF, o problema piorou com a redução do número de delegados dedicados à operação (de nove para quatro).

A origem do desentendimento, no entanto, está na queda de braço entre as duas corporações sobre quem tem competência para firmar acordos de delação. Esta disputa colocou o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, no alvo da PF, que foi excluída das negociações com a Odebrecht por ordem de Janot. A empreiteira firmou a maior delação da Lava Jato – 78 colaboradores.

Opositores ao acordo com a Odebrecht, delegados da PF afirmaram que as provas encontradas no Setor de Operações Estruturadas – o “departamento da propina” da empresa – eram suficientes para se chegar aos crimes praticados pelos executivos da empreiteira.

O procurador-geral da República é autor de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal que busca impedir que a polícia faça acordos de delação sozinha com investigados. “Infelizmente, o atual PGR passou a adotar uma postura de tentar reduzir a capacidade da polícia, que detém o poder de investigação assegurado pela Constituição, para se autoafirmar como ‘investigador’”, afirma o delegado Márcio Adriano Anselmo, que iniciou as investigações da Lava Jato em Curitiba, em 2013 .

 

‘Instrumento’. Ao tratar do assunto, o diretor-geral da Polícia Federal, delegado Leandro Daiello, é incisivo: “A colaboração premiada é um instrumento de investigação. E, sendo um instrumento de investigação, é para ser aplicado pela Polícia Federal”, diz, durante evento na Escola de Direito da FMU, em São Paulo, anteontem.

O Supremo se prepara para pôr em pauta a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5508, na qual o procurador-geral da República questiona dispositivos da Lei 12.850/2013, que atribui a delegados de polícia o poder de realizar acordos de delação. Na quarta-feira, o ministro Marco Aurélio Mello, relator da ADI na Corte, pediu informações a Daiello sobre o procedimento adotado na PF para formalização de acordos de colaboração.

O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho Cavalcanti, afirma que o Ministério Público não “está fazendo nenhum ataque à polícia. Essa é uma falsa polêmica.” diz Robalinho.

Em nota, a Procuradoria Geral da República informou que “conforme a Constituição, o Ministério Público é o titular da persecução criminal”. “A Polícia não pode negociar acordos de colaboração premiada porque não é nem pode ser parte em ação penal.”

 

Crítico. O delegado Márcio Adriano Anselmo iniciou as investigações da Lava Jato em 2013

 

Atribuição

“A colaboração premiada é um instrumento de investigação. E, sendo um instrumento de investigação, é para ser aplicado pela PF.”

Leandro Daiello

DIRETOR-GERAL DA POLÍCIA FEDERAL

 

“Ninguém está querendo diminuir a polícia. Procuradores defendem que o monopólio dos acordos é deles, por serem responsáveis exclusivos pela acusação criminal na Justiça.”

José Robalinho Cavalcanti

PRESIDENTE DA ANPR

 

 

 

ENTREVISTA - Márcio Adriano Anselmo

Por: Ricardo Brandt

ENTREVISTA  - Márcio Adriano Anselmo, delegado da Polícia Federal

 

‘Atual PGR tenta se autoafirmar como investigador’

Márcio Adriano Anselmo, delegado da Polícia Federal

 

Responsável por iniciar as investigações da Operação Lava Jato em Curitiba, o delegado Márcio Adriano Anselmo, especialista em delações premiadas, afirmou que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, tenta “reduzir a capacidade” da Polícia Federal nas investigações criminais para “se autoafirmar investigador”. Atual corregedor da PF no Espírito Santo, Anselmo pediu para sair da equipe da Lava Jato em 2016, após a PGR exigir que a polícia fosse excluída das negociações da maior delação da investigação na Petrobrás: a dos 78 delatores da Odebrecht. Leia os principais trechos da entrevista:

 

Deve existir um limite para o número de delatores em uma investigação? Como definir isso?

É difícil estabelecer um limite. A colaboração premiada é um procedimento excepcional e como tal deve ser tratado, mas não deve ser submetido a um limite, a depender da complexidade dos fatos investigados. Veja, por exemplo, o caso da Operação Lava Jato.

 

O Ministério Público Federal afirma que só ele pode fechar delação? Por que a Polícia Federal também pode fazer acordos? E como garantir ao investigado benefícios no processo?

O MP não tem o monopólio da acusação, tanto que existe a ação penal privada. A colaboração é um meio de obtenção de prova e não um instrumento exclusivo da acusação. Essa postura do MP é diametralmente oposta à adotada pelo mesmo órgão na época das discussões da PEC 37 em que o MPF alegava que “quanto mais gente investigar melhor”. Chegaram a afirmar que até cachorro investigava. A previsão da titularidade da PF nos acordos é expressa em lei, basta ler o texto da Lei 12.850 que trata da colaboração premiada. Nada mais óbvio, uma vez que a colaboração é um meio de obtenção de prova.

 

Delações sem elementos de corroboração podem minar uma investigação?

Quando são tornadas públicas, antes das diligências necessárias, certamente. Uma colaboração malfeita tem resultado extremamente danoso à investigação, pior do que se ela não existisse.

 

Quem ganha com a falta de entendimento entre MPF e Polícia sobre o uso das delações?

Não é falta de entendimento, mas falta de cumprir a lei – de quem deveria zelar pelo seu cumprimento. Infelizmente o atual PGR passou a adotar uma postura de tentar reduzir a capacidade da polícia (que detém o poder de investigação assegurado pela Constituição) para se auto afirmar como “investigador”. Se cada um cumprisse sua função constitucional, a situação seria bem melhor para o sistema de Justiça criminal.

 

O instituto da delação, que garantiu em grande parte o sucesso da Lava Jato, está sob risco, com os ataques?

O instituto da colaboração foi apenas um dos elementos de sucesso da operação. Somente isso. É bom destacar que, se não existisse uma investigação bem feita, com farto material probatório, não existiriam “delatores”. Por outro lado, se passar a ser usado de maneira indiscriminada, pode ser também motivo de fracasso. / R.B.

 

 

 

 

O voo de saída dos 'tuiuiús', o grupo de Janot

Novo ares / Equipe que comanda o Ministério Público há 14 anos dá lugar ao grupo de Raquel Dodge
Por: Beatriz Bulla

 

Beatriz Bulla / BRASÍLIA

 

No início do ano, aliados do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, diziam que ele poderia concorrer a um terceiro mandato para seguir como chefe do Ministério Público Federal. Ele não negou. Janot não concorreu nas eleições internas, mas o boato o favorecia. O procurador tinha um medo: perder o poder à frente da instituição meses antes de sua saída. Ele disse a pessoas próximas que tinha sinais de que estavam “avançando em sua cadeira” antes do tempo.

A menos de 40 dias da troca na PGR, equipes de Janot e Raquel Dodge, sua sucessora, trabalham na transição de gabinetes. Desde a chegada dos tuiuiús – grupo do qual Janot faz parte – ao comando da instituição, em 2003, a passagem de bastão sempre ocorreu para um aliado, nunca um antagonista – o que ocorre agora.

O grupo dos tuiuiús foi formado na década de 1990 por procuradores da República que lutaram para que a categoria pudesse participar da escolha do chefe da instituição. Eles fizeram oposição ao ex-procurador-geral Geraldo Brindeiro, nomeado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso por quatro vezes. O nome do grupo, que se autodenominou desta forma, é referência a uma ave de mesmo nome do Pantanal que tem dificuldade em voos altos, em alusão aos problemas que enfrentavam na gestão tucana.

Raquel, escolhida pelo presidente Michel Temer para chefiar o Ministério Público, é considerada por Janot uma adversária interna. O procurador-geral, por sua vez, é tido como o último dos tuiuiús. Apesar disso, as equipes dizem que os trabalhos têm andado com tranquilidade.

Integrantes da Lava Jato consideram que a nova procuradora não vai mudar – nem seria capaz – de forma drástica o rumo da investigação ou atrapalhar a continuidade do caso. Para procuradores, o discurso contra Janot criado pelo Congresso, Planalto e ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, autorizariam Raquel a desfazer conquistas importantes da atual gestão. Investigadores avaliam, no entanto, que é difícil que isso aconteça.

A rápida preferência de Temer por Raquel e o encontro noturno entre a nova procuradora-geral da República e o presidente, na segunda-feira passada, geraram desconfianças no Ministério Público. Mas subprocuradores da República ouvidos pela reportagem dizem que não há uma grande divergência jurídica entre os dois, e sim modos distintos de trabalho. Mesmo votos destinados a Raquel, dizem, não foram necessariamente votos “anti-Janot”.

Depois do desconforto gerado dentro da PGR com a notícia do encontro com Temer, Raquel decidiu que sua posse vai ocorrer no prédio da instituição. O cerimonial da Presidência tinha sugerido realizar o evento no Planalto, o que quebraria uma tradição. A hipótese foi cogitada inicialmente.

Toda a equipe próxima a Janot deve ser substituída. Antes disso, o grupo vai entregar a Raquel um relatório sobre a situação de cada secretaria. Na Lava Jato, os documentos vão incluir a análise de todos os acordos de delação firmados.

Raquel deve anunciar nas próximas semanas parte de sua equipe. A expectativa é de que o vice-procurador-geral seja Luciano Maia, ligado à proteção dos direitos indígenas, ou o subprocurador Humberto Jacques de Medeiros. Os procuradores Alexandre Camanho e Raquel Branquinho, que integram a equipe de transição, são cotados para os cargos de secretáriogeral e responsável pelo grupo de trabalho da Lava Jato, respectivamente.

 

Sofá. Na semana passada, Janot trocou seu amplo gabinete do Bloco A da cobertura da PGR, em Brasília, por uma sala do outro lado do corredor, já no Bloco B. O local passa por pintura, numa preparação para receber Raquel. Na última quinta-feira, Janot ficou por alguns minutos sentado em frente ao seu gabinete, em sofás usados como sala de espera. “Estou fazendo treinamento para ver como é. Quando eu quiser falar

(com a PGR) vou ter que esperar aqui, né?”, brincou, sobre seu futuro próximo.