Título: Covardia crescente
Autor: Maia, Flávia
Fonte: Correio Braziliense, 21/02/2012, Cidades, p. 17

Registros de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes cresceram 67,5% nos últimos dois anos no Distrito Federal. Somente em janeiro, foram anotadas 34 ocorrências, mais de uma por dia. A polícia prendeu 12 abusadores NotíciaGráfico

As denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes não param de crescer na capital do país. Nos dois últimos meses, as histórias de abusos como a do pai que engravidou a própria filha de 12 anos em Ceilândia e a do padre que praticava atos libidinosos com os filhos de fiéis em São Sebastião chocaram o Distrito Federal. O aumento dos casos divulgados coincide com a alta média de queixas. Elas ultrapassam a marca de uma por dia. Os números sinalizam que o crime ainda velado e cercado de tabus começa a sair das quatro paredes onde normalmente é cometido. As ocorrências em 27 das 31 regiões administrativas do DF mostram que o perverso crime não depende de conta bancária e está presente em todas as classes sociais.

Somente em janeiro deste ano, 34 ocorrências foram registradas, seis a mais do que no mesmo período do ano passado. Um crescimento de 21,4%. Em dois anos, os registros subiram 67,5%, saltando de 243 para 407 somente na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Graças às denúncias e às investigações da DPCA, pelo menos 12 abusadores foram presos nos últimos dois meses.

O aumento das denúncias segue a tendência do resto do país. As queixas pelo Disque 100 cresceram mais de cinco vezes, saltando 160 mil atendimentos para 866 mil de 2010 para 2011. A procura por auxílio especializado demonstra que as famílias brasileiras estão começando a perceber que o problema do abuso sexual não pode ser resolvido apenas no ambiente doméstico.

"Na cultura brasileira, os assuntos de família ainda devem ser resolvidos dentro de casa. Veja pelos nossos ditados "não se mete a colher em briga de marido e mulher", "desde pequenino se torce o penino". Com o aumento das denúncias, percebemos que essa realidade começa a ser redesenhada", afirma Adriana Costa de Miranda, mestre em sociologia pela Universidade de Brasília e autora do livro Conversando sobre a violência sexual com a criança.

Apesar de o crescimento das denúncias simbolizar o princípio da quebra do silêncio no ambiente doméstico, representantes da Vara da Infância, do Ministério Público e da DPCA admitem que os números não traduzem a real dimensão da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil e no DF. "A gente sabe que o abuso sexual é subnotificado. Muitas vezes a família não denuncia porque o abusador é o provedor da casa, ou por vergonha ou por não querer que um profissional que não pertence à família resolva um problema doméstico", explica a promotora Daniele Martins, responsável pelo Núcleo de Enfrentamento à Violência e a Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes do MPDFT.

O crime de abuso sexual é cometido em 80% dos casos por pessoas próximas às crianças, como pais, padrastos e irmãos. Ou então por gente de confiança da família, como os religiosos. De acordo com estatísticas da Vara da Infância, o padrasto e o pai são os responsáveis pelo abuso em 45% das vezes. Os abusadores sem vínculo com a família da vítima somaram apenas 4,34% dos casos. Por causa das relações de afetividade, abusos são acobertados e deixados de lado. Ou então a denúncia é retardada, levando a vítima a um sofrimento por tempo maior.

O coordenador do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes, Vicente Faleiros, defende que o abuso é um crime que não ocorre apenas entre vítima e abusador. Existe também o contexto em que se dá esse abuso, como as relações familiares e a complacência da sociedade, que tende a não acreditar que o abuso pode acontecer dentro da própria casa. "Existe uma triangulação que dificulta que a violência chegue às autoridades competentes. A família guarda esse segredo", explica.

Perfil do abusador A dificuldade de entender o abuso dentro de casa é reforçada pelo comportamento de alguns abusadores e das crianças. Nem sempre as vítimas rejeitam o agressor. Além do parentesco, eles ganham a confiança das crianças com carinho e presentes. "São poucos os casos em que a criança fala que não quer ver o abusador. Algumas vezes elas até gostam dele, por isso a mãe não acredita quando a criança conta", analisa Viviane Amaral dos Santos, supervisora do Centro de Referência para Violência Sexual contra Criança e Adolescente da Vara da Infância.

O discurso sedutor do abusador induz a criança a praticar os jogos sexuais e a desenvolver uma erotização precoce. Por isso, uma das estratégias de defesa mais comum nos tribunais é desqualificar a vítima e dizer que "ela me atraiu, ela sabe o que faz". No entanto, desde a implantação do depoimento sem dano nos júris brasileiros, a tendência é acreditar no menor abusado. "A lei entende que a criança é sempre inocente, quem dá limite a ela e educa é o adulto", explica a delegada-chefe da DPCA, Valéria Martirena.

Em agosto de 2009, o Código Penal e a Lei de Crimes Hediondos sofreram alterações. Desde então, qualquer ato libidinoso contra menores de 14 anos é considerado estupro de vulnerável. Dessa forma, o abusador não precisa ter conjunção carnal com a vítima para ser considerado culpado. Um ato de voyerismo ou carícias que gerem tesão no abusador são suficientes para ele ser enquadrado no mesmo rol do estupro. Atualmente, 80% dos abusos sexuais são de outros atos que não a penetração, como, por exemplo, o sexo oral e a manipulação da genitália.

Fique de olho

Não existe um comportamento padrão para detectar se a criança está sofrendo ou não violência sexual. Mas algumas observações são importantes:

» Se a criança demonstrar algum conhecimento sexual, desconfie.

» Observe as palavras das crianças, veja se elas são as comuns para a sua idade.

» Outros sintomas importantes são depressão, agressividade e retração