Reforma tributária, de novo

Marcos Cintra

02/08/2017

 

 

Volta-se a discutir a reforma tributária. O governo deseja fatiá-la, mexendo inicialmente apenas no PIS/Cofins. Mas cogita aproveitar o projeto do relator da Comissão de Reforma Tributária na Câmara dos Deputados, Luiz Carlos Hauly, para promover mudanças mais profundas.

A ideia central do deputado Hauly é unificar o PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS. A base de cobrança da junção seria o valor adicionado em cada elo da cadeia produtiva, dando origem a um IVA (Imposto sobre Valor Adicionado) nacional. A arrecadação seria feita pela União e partilhada com os demais entes federativos. A legislação seria do governo central. A intenção é simplificar a estrutura tributária. O autor destaca, além desse aspecto, o combate à guerra fiscal que a criação do IVA nacional permitiria.

A unificação de tributos em um IVA federal obviamente facilitaria a rotina do setor produtivo e também a gestão de impostos e contribuições pelo fisco. A centralização do ICMS e do ISS no âmbito federal eliminaria as nocivas guerras fiscais promovidas pelos estados e municípios. Contudo, ainda que importantes, essas ações não são suficientes para classificar o projeto do deputado Hauly como eficaz para racionalizar a estrutura tributária do país.

Há outras questões relevantes que devem ser analisadas cuidadosamente, sob pena de aprofundamento das anomalias atuais. O principal problema do sistema tributário brasileiro é a evasão. A estimativa da sonegação anual está na casa de meio trilhão de reais, de acordo com o Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz). O fenômeno é seguramente uma das causas do péssimo padrão de incidência do ônus tributário entre os contribuintes no país. Quem paga impostos no Brasil paga demais, pois precisa compensar a gigantesca fuga de arrecadação que equivale a 8% do PIB.

Vale lembrar que as razões da forte sonegação são as elevadas alíquotas tributárias combinadas com a predominância de uma estrutura declaratória de arrecadação. Quanto maior a alíquota de um tributo, maior o prêmio ao sonegador. Tal fato, associado à burocracia inerente ao sistema declaratório, cria um ambiente que estimula e facilita omissões e fraudes visando reduzir o recolhimento de tributos.

Essa situação distorce a competição empresarial no Brasil. Uma firma que sonega prospera frente ao concorrente que não consegue praticá-la, ainda que possa ser menos eficiente. E daí surge a pergunta: o IVA federal proposto pelo deputado Hauly seria capaz de atender aos quesitos colocados acima e enfrentar a anomalia da sonegação?

Definitivamente, não. É possível até que agrave o problema. Para que o novo IVA federal arrecade os mesmos valores dos tributos que ele unifica, a alíquota exigida seria extremamente elevada, algo próximo de 30%. Atualmente o ICMS, que é um IVA estadual, com alíquota de 18%, é o imposto mais sonegado do país, com estimativa de evasão da ordem de R$ 110 bilhões, de acordo com o Sinprofaz. É fácil imaginar o dramático estímulo à sonegação que uma alíquota de 30% iria produzir, afinal, a sonegação varia em proporção direta com a alíquota nominal dos tributos.

Para fazer frente a esse fato, a proposta de Hauly prevê a criação de novo imposto chamado de Seletivo, que incidiria sobre produtos de amplo espectro na cadeia produtiva e nos padrões de consumo, como energia e combustíveis. Mas isso teria como inevitável resultado o generalizado desalinhamento dos preços relativos, reduzindo significativamente a eficiência alocativa nos processos de produção e consumo do país. O IVA federal aliviaria a complexidade do sistema e acabaria com a guerra fiscal. Mas tornaria a estrutura tributária mais vulnerável à sonegação e à incerteza arrecadatória.

Levar esse projeto adiante seria o mero “aperfeiçoamento do obsoleto”, como afirmou Roberto Campos certa ocasião, ao avaliar proposta semelhante. (...)

O intrigante nesse tema é que o uso de um tributo sobre movimentação financeira havia sido inicialmente idealizado pelo deputado. Mas, lastimavelmente, ele voltou atrás na proposta inicial. Há várias hipóteses sobre as causas da reversão, mas a que me parece mais provável é que um tributo insonegável e de largo alcance, como a movimentação financeira, fere os interesses de grupos econômicos e deflagra poderosas pressões contrárias. Os escândalos da Operação Zelotes estão a demonstrar a correção da hipótese.

 

 

 

MARCOS CINTRA

Doutor em Economia pela Universidade Harvard (EUA), professor titular da Fundação Getulio Vargas, presidente da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos)

 

 

Correio braziliense, n. 19790, 02/08/2017. Opinião, p. 11.