Nação sem rumo

Rodrigo Craveiro

06/08/2017

 

 

O falecido presidente Hugo Chávez jurou seguir até a morte os termos da Carta Magna de 1999, que ele próprio ordenou redigir. “Por Cristo, o maior socialista da história, por todas as dores, por todos os amores, por todas as esperanças que farei cumprir com os mandatos supremos desta maravilhosa Constituição, ainda que custe minha própria vida”, declarou. Quatro anos depois de Chávez ser levado por um câncer, o afilhado político Nicolás Maduro fez da convocação da Assembleia Nacional Constituinte uma espécie de tábua de salvação, enquanto a Venezuela naufraga em uma das piores crises políticas e socioeconômicas da história. A medida unilateral custou ontem a suspensão, pela segunda vez em oito meses, do país do Mercosul.

Por unanimidade, durante reunião em São Paulo, os chanceleres de Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina entenderam que houve ruptura da ordem democrática. “A suspensão da Venezuela foi aplicada em função das ações do governo de Nicolás Maduro e é um chamado para o imediato início de um processo de transição política e restauração da ordem democrática”, afirma o comunicado assinado pelos ministros.

A reação de Maduro foi rápida. “Não vão tirar a Venezuela do Mercosul. Nunca. Somos Mercosul de alma, coração e vida. Algumas oligarquias golpistas, como a do Brasil, ou  miseráveis, como a que governa a Argentina, poderão tentar mil vezes, mas sempre estaremos aí”, disse o líder venezuelano à Rádio Rebelde da Argentina.

 

Superpoderes

Para especialistas, a decisão do Palácio de Miraflores de instalar a Constituinte pode sepultar de vez as liberdades individuais, perpetuar Maduro no governo e consolidar o socialismo do século 21 no país. O brasileiro Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), reconhece que a Constituinte, dotada de superpoderes, representaria uma ameaça para o próprio Maduro. No entanto, o Executivo forjou o processo com aliados incondicionais. “O mais provável é uma posição talhada para facilitar a sua manutenção no poder. De repente, uma codificação maior de limitações da imprensa e para facilitar o controle sobre o Legislativo e o Judiciário”, analisa. Algo que já ocorre na prática, com o domínio do Palácio de Miraflores sobre o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) e a anulação das atribuições da Assembleia Nacional.

Segundo Stuenkel, a consolidação de um sistema autoritário deve aumentar o incentivo para aqueles que desejarem abandonar a Venezuela. “O Brasil precisa se preparar para a chegada de um número cada vez maior de refugiados”, adverte. Na opinião dele, a suspensão do Mercosul mostra que a pressão exercida por Brasil e Argentina sobre o Uruguai surtiu efeito. “É um passo sobretudo simbólico. A próxima etapa será a discussão de medidas adicionais, o chamado Protocolo de Ushuaia 2, que contemplaria uma série de restrições, como limitar o trânsito na fronteira”, exemplificou.

A suspensão pode ter influência em grupos de Washington que pedem ações mais severas do governo Donald Trump em relação a Caracas. De imediato, o brasileiro não vê muito impacto sobre o regime de Maduro. “Apesar de tudo, é importante, pois simboliza que o bloco funciona e reafirma a cláusula democrática. Nesse sentido, o Mercosul sai fortalecido.”

Professor de pós-graduação da Universidad Central de Venezuela (UCV), Jesús Méndez Quijada vê a instalação da Constituinte como a concretização de um plano forjado antes mesmo da morte de Chávez, com a aliança de facções que coabitavam o chavismo e apontavam para o férreo controle do poder. Com todas as pesquisas indicando o fracasso de Maduro nas urnas, o governo suspendeu as eleições para governadores e prefeitos. “O caminho autoritário estava traçado. A resposta cívica aos protestos, que se arrastam há mais de três meses, obrigou o regime a passar para uma nova fase. A Constituinte foi desenhada de modo que houvesse a possibilidade de um único resultado: a vitória do governo”, explicou.

O especialista admite três possíveis cenários na Venezuela. O primeiro envolveria a radicalização do projeto autoritário, calcado em uma visão coletivista da política e da economia. “Nesse contexto, é previsível a manutenção de um clima de agitação política, incentivado pela defesa dos  critérios democráticos, mas também pela deterioração das condições de vida dos venezuelanos”, comentou Quijada. Apesar da inflação acima dos 500%, o comportamento imponderável do mercado do petróleo poderia favorecer um controle mais rígido de Maduro, com maior repressão

O segundo cenário previsto pelo professor da UCV envolve a redefinição de alianças entre as facções, apressada pela instabilidade e pela ingovernabilidade. Caso Maduro seja considerado inapto a reverter a crise, as Forças Armadas poderiam se ver compelidas a assumir o controle do país.

 

 

Radicalização

“A terceira hipótese seria que a pressão interna, somada a decisões de alto impacto da comunidade internacional, obrigariam a uma negociação política capaz de conduzir a Venezuela rumo a uma eleição confiável, com garantias suficientes de transparência”, observa Quijada. No entanto, alerta, pode ser tarde demais. “A ditadura já se instalou. Não nos termos tradicionais, mas a progressiva concentração de poder, o controle direto de todas as instituições e a perseguição aos opositores são práticas alijadas da democracia”, disse.

O advogado e cientista político venezuelano Carlos Sanchez Berzain, diretor do Instituto Interamericano pela Democracia, prevê um cenário de confrontação permanente de baixa ou de alta intensidade. “No entanto, o regime está debilitado, e as condições econômicas e políticas desfavoráveis poderiam forçar Maduro a optar por uma saída negociada nas próximas semanas”, explicou. O estudioso entende que a Constituinte decretará a absoluta dependência do povo em relação ao governo. “Os venezuelanos poderão abandonar o país e exercer grave pressão sobre países da América Latina, sobretudo Brasil, Colômbia e Panamá”, alerta.

Berzain teme a “contaminação” de Estados da região, como Bolívia e Nicarágua, propensos a regimes pouco democráticos. “Prevejo a radicalização absoluta de um governo que não conta nem com 10% de respaldo popular e se sustenta somente pela força das armas.”

 

Frase

“Não vão tirar a Venezuela do Mercosul. Nunca. Somos Mercosul de alma, coração e vida

Nicolás Maduro, presidente da Venezuela

 

Pontos de vista

 

Por Diego Enrique Arria

“Adeus ao pouco de liberdade”

“O regime de Maduro oficializou, ante os olhos do mundo, a maior fraude eleitoral que colocará fim ao muito pouco que resta de liberdade. Não tenho dúvidas de que a Venezuela passará a se chamar República Bolivariana da Venezuela do Poder Socialista ou algo similar. Eles vão impor o poder popular, replicando o modelo comunista cubano. Apenas com sanções econômicas será possível alterar o curso na Venezuela. A remoção de Maduro é indispensável para resgatar a liberdade e a institucionalidade na Venezuela, e para aliviar a pressão migratória  sobre o Brasil e a Colômbia.”

Ex-governador de Caracas, diplomata e ex-candidato à Presidência da Venezuela

 

Por Oliver Stuenkel

“A ditadura será consolidada”

“O cenário mais provável é a consolidação da ditadura. A criação da Constituinte representa uma vitória para Maduro. Não me parece provável que haja sanções econômicas mais pesadas. A estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA) se prepara para um ‘plano B’, caso haja embargo por parte dos EUA. Mesmo neste cenário, o governo consegue se manter. Se Maduro cair, em função da instabilidade, um general assumiria. A oposição está isolada neste momento. A Constituinte tem superpoderes e, em teoria, poderia até mesmo derrubar o presidente. É uma espécie de governo paralelo.”

Professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV)

 

 

Correio braziliense, n. 19794, 06/08/2017. Mundo, p. 14.