O globo, n.30709 , 04/09/2017. PAÍS, p.3

À mercê do crime

LUIZA SOUTO

 

 

 

Falta de verba impede acesso ao programa de proteção de jovens ameaçados de morte

Aos 8 anos de idade, Augusto viu a mãe ser morta pelo pai, que também o ameaçou. Aos 13, acusado de participar de um assalto na Baixada Santista (SP), passou a ser ameaçado por traficantes que agiam naquela região. Hoje, aos 16, com a ajuda de familiares, tenta uma vaga no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). O acesso ao programa, porém, está cada vez mais restrito porque os estados alegam falta de verbas para prestar o atendimento.

O aumento da fila de jovens que não conseguem encontrar abrigo em entidades mantidas pelo Estado para justamente dar proteção a quem sofre qualquer tipo ameaça, seja pelo tráfico ou mesmo por casos de violência sexual, é evidente. Levantamento feito pelo GLOBO em 13 estados, mais o Distrito Federal, revela que, hoje, 357 crianças estão sob proteção, contra centenas de jovens na fila para tentar evitar um desfecho trágico de suas histórias.

Em alguns estados, como São Paulo e Rio, o número de crianças e adolescentes à espera de proteção chama a atenção. Entre os paulistanos, pelo menos 80 casos sequer estão sendo avaliados. Motivo: o atraso no repasse das verbas federais. Apenas no início de setembro é que o governo liberou R$ 9,8 milhões para atender a todos os estados, sendo que o dinheiro deveria chegar no início do ano. O orçamento, no entanto, sofreu um baque em relação a 2015, quando foram transferidos para o estados R$ 13,1 milhões. Sem os recursos, os estados vinham mantendo sozinhos o programa. Pela lei, o serviço deve ser custeado com 50% de verbas da União. A outra metade deve ser financiada pelos estados.

No Pará, apenas 13 crianças e adolescentes são protegidos, enquanto outros 12 estão na fila aguardando por uma vaga no programa. O governo do Pará confirma problemas com repasse. No Paraná, que contabiliza 17 jovens sob proteção, profissionais da área de direitos humanos contam que cerca de dez jovens não tiveram seus casos analisados por falta de repasses neste ano.

Em Minas Gerais, foram 205 pedidos neste ano e apenas 30 acolhimentos. O governo mineiro admite redução de equipe, mas afirma que nunca deixou de receber nenhum caso. O defensor público Wellerson Eduardo da Silva Corrêa afirma, porém, que não há funcionários para analisar tantos pedidos.

O problema se repete no Rio Grande do Sul, hoje com 13 jovens em atendimento.

— O programa não consegue atender a demanda e há grande dificuldade de proteger adolescentes que sofrem ameaças dentro do sistema socioeducativo e da rede de abrigos institucionais — avalia o defensor Jonas Scain Farenzena, do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente (Nudeca), que atua em Porto Alegre.

O governo gaúcho não se pronunciou sobre o assunto.

No Rio de Janeiro, dos 47 pedidos recebidos até este mês, apenas 16 ingressaram no serviço de proteção. A justificativa do governo fluminense é que muitos não têm o perfil ou não aceitam fazer parte do programa por discordarem das regras: acesso totalmente proibido à internet e contato quase zero com familiares.

Além dos 357 jovens, o programa ainda inclui também 527 familiares ameaçados. Números do Índice de Homicídios na Adolescência (IHA) revelam que, para cada mil crianças que completaram 12 anos em 2014, 3,65 não chegarão aos 19 anos de idade. Até 2021, estima-se que cerca de 43 mil adolescentes serão assassinados no país. É o maior índice da série histórica.

No Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, crianças e adolescentes passam, em média, um ano sob proteção. A falta de verba criou distorções, e alguns jovens não conseguem ficar o tempo necessário. O conselheiro tutelar Gledson Silva Deziatto, que cuida do caso de Augusto, foi notificado por e-mail de que o estado de São Paulo não tinha condições de aumentar as vagas:

— Mandei para a secretaria de Defesa e Justiça o pedido de inclusão dele e justificaram que o atendimento estava suspenso desde janeiro. Como o caso dele é grave, consegui colocá-lo provisoriamente num abrigo.

— Me sinto sem chão. Estou dependendo de uma tia doente e cuidando de mais duas crianças, sem poder voltar para casa — afirma a cuidadora de Augusto.

Por e-mail, a secretaria informa que “foi surpreendida” com duas prorrogações de aporte de verbas e que precisou interromper, com isso, a avaliação dos 80 casos.

Quem é inserido no programa, no entanto, está tentando refazer a vida. Laura*, de 15 anos, recebeu graves ameaças de morte na comunidade onde morava com a família, no Rio de Janeiro. Hoje os pais buscam emprego e ela e o irmão estão estudando bem distantes de onde nasceram. Por causa das ameaças, um parente recebe cuidados para tratar da saúde mental.

— Deixamos para trás nossa casa, familiares e amigos. Hoje estamos bem, tocando nossa vida, mas não desejo para ninguém o que passamos. Espero que um dia possa voltar para lá de novo — diz a mulher, que não pode ser identificada.

 

“SÃO MILHARES DE PESSOAS AMEAÇADAS”

A coordenadora do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca), que executa o PPCAAM no Rio, Vera Cristina, destaca que o acesso ao programa “não reflete a realidade de milhares de ameaçados”.

— De cada seis pessoas que pedem, uma entra. Não só porque não há vaga, mas as regras são difíceis e tem gente que não aguenta. É um número muito pequeno de pessoas que acessam o programa. Não reflete a realidade. São milhares de pessoas ameaçadas — afirma Vera.

A coordenadora admite que o atendimento só prosseguirá normalmente com a liberação de recursos no tempo adequado:

— Todos os pedidos de inclusão são avaliados, e alguém só não entra se não for caso para o PPCAAM. Se a demanda não aumentar, teremos recurso suficiente para atender até dezembro.

Por todo o país, as histórias de ameaças se repetem. Pedro, hoje com 25 anos, namorou na adolescência a filha de um traficante de Praia Grande, também na Baixada Santista. O pai da garota não gostava dele e o torturou. Os pais também o abandonaram. Chegou a tomar dois tiros na cabeça. Incluído no programa de proteção, foi enviado para Espírito Santo, e hoje ele faz tratamento psicológico.

— Foi a história mais pesada que atendi. A avó dele ficava me pedindo para achá-lo porque os pais queriam matá-lo — conta um profissional que atuou no caso, lembrando que o jovem, hoje sem proteção do estado, vive escondido com ajuda de ativistas pelos Direitos Humanos.