Correio braziliense, n. 19838, 15/09/2017. Política, p. 2.

 

Janot lança a ÚLTIMA FLECHA

Paulo de Tarso Lyra e Natália Lambert

15/09/2017

 

 

Em seu derradeiro ato no cargo, o procurador-geral da República cumpriu o que havia dito, de forma metafórica, e flechou, na forma de uma nova denúncia, o presidente Michel Temer. Ele é acusado de chefiar uma organização criminosa ao lado dos companheiros de partido Eduardo Cunha, Henrique Alves, Geddel Vieira Lima, Rodrigo Rocha Loures, Eliseu Padilha e Moreira Franco. As penas propostas variam de três a oito anos, mais multa. Já em parceria com os empresários Joesley Batista e Ricardo Saud, ambos da J&F, o presidente é acusado de obstrução de Justiça, exposto às mesmas punições. A denúncia precisará ser analisada pela Câmara para ter andamento no Supremo Tribunal Federal (STF).

Janot baseou sua peça acusatória em três frentes: as provas coletadas nas investigações da J&F, o inquérito da Polícia Federal contra os integrantes do grupo chamado de “PMDB da Câmara” e a delação do doleiro Lúcio Funaro, que operava a aquisição de recursos para essas pessoas.

Na denúncia, Janot afirma que o grupo agia desde 2006 — período em que se aproximou do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva para garantir-lhe a reeleição — até os dias atuais, “com vontade livre e consciente, de forma estável, profissionalizada, preordenada, com estrutura definida e com repartição de tarefas, para cometimento de uma miríade de delitos, em especial contra a Administração Pública, inclusive a Câmara dos Deputados”.

Os integrantes da organização criminosa tinham funções definidas. Segundo Janot,Temer, que assumiu a Presidência do partido em 2001, ao lado de Henrique Alves, que exerceu a liderança do partido na Câmara entre 2007 e 2013, organizavam a distribuição dos cargos que interessavam ao partido. Já os demais acusados seriam os operadores do esquema de arrecadação de propina. Segundo Janot, as ações concentraram-se em diversos órgãos públicos, tais como a Petrobras, Furnas, Caixa Econômica Federal, Ministério da Integração Nacional, Ministério da Agricultura, Secretaria de Aviação Civil e a própria Câmara.

 

Contabilidade

Os números apresentados na denúncia são vultosos. Segundo a Procuradoria-Geral da República, o esquema rendeu, a título de propina, pelo menos R$ 587 milhões aos envolvidos. “Além disso, os crimes praticados pela organização geraram prejuízo também aos cofres públicos. Nesse sentido, em acórdão lavrado pelo TCU (Tribunal de Contas da União), estimou-se que a atuação perante a Petrobras implicou prejuízos à estatal que podem ter chegado a R$ 29 bilhões”, disse Janot, na denúncia.

O procurador disse ainda que o grupo criminoso adquiriu caráter transnacional, utilizando-se de mecanismos de ocultação e dissimulação de valores ilícitos. Essas práticas, diz a denúncia, são demonstradas por meio de “transferências bancárias internacionais, na maioria das vezes com o mascaramento em três ou mais níveis, isto é, movimentações sucessivas, tendentes a distanciar a origem dos valores; e a aquisição de instituição financeira com sede no exterior, com o objetivo de controlar, amainando-as, as práticas de compliance e, assim, dificultar o trabalho das autoridades.

Para Janot, a organização não era restrita apenas ao PMDB da Câmara, estendendo-se a integrantes do PT e do PP, além de integrantes do PMDB do Senado. Ele ressalta que parte da quadrilha ajudou na eleição de Lula em 2002 e, desde então, com o PT, montou um esquema de cobrança de propinas para financiar campanhas eleitorais. Como reforço das convicções, ele apresentou trechos de conversas entre os integrantes da organização criminosa e até o número de vezes em que eles se falaram. Cunha e Henrique Alves, por exemplo, conversaram, por telefone, mensagem de texto e multimídia, entre 2012 e 2014, nada menos que 9.523 vezes.

O procurador-geral lembrou que o PMDB do Senado já havia aderido ao governo Lula ainda durante o primeiro mandato. Os deputados do partido, liderados por Temer, só se alinharam politicamente com o governo em 2006, às vésperas da reeleição de Lula. “Não havia entre os integrantes do PMDB, do PP e do PT uma relação de subordinação e hierarquia. A relação mantida era de aderência de interesses comuns, marcada por uma certa autonomia”, ressaltou o procurador-geral.

Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Carlos Lamachia, a denúncia é gravíssima. “Jamais a República Brasileira testemunhou crise de tais proporções. É preciso investigar e cumprir todas as etapas previstas na liturgia jurídica. Não é hora de estardalhaços, nem de tentativas de explorar politicamente o quadro”, defendeu Lamachia.