Correio braziliense, n. 19842, 19/09/2017. Política, p. 3.

 

Defesa da harmonia e do combate à corrupção

Natália Lambert e Renato Souza

19/09/2017

 

 

Em uma rápida cerimônia, de cerca de 30 minutos, o presidente Michel Temer deu posse à primeira mulher à frente da procuradoria-geral da República, Raquel Dodge, na manhã de ontem, iniciando uma nova era no Ministério Público Federal (MPF). A expectativa entre políticos, procuradores e especialistas é de um clima mais sereno entre as instituições — dado o perfil mais discreto de Dodge em comparação ao ex-procurador-geral Rodrigo Janot. Entretanto, apesar da esperança de alguns no meio político, a previsão é de que não haja flexibilização no combate à corrupção.

Sentada à mesa ao lado da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, de Michel Temer e dos presidentes do Senado e da Câmara, Eunício Oliveira (PMDB-CE) e Rodrigo Maia (DEM-RJ), respectivamente, a nova chefe do Ministério Público da União defendeu a harmonia entre os Poderes e fez um duro discurso de combate à corrupção, usando a palavra sete vezes. Por outro lado, o termo “Lava-Jato” não foi mencionado em nenhum momento.

Durante a fala, Dodge afirmou que o MP tem o dever de cobrar dos que gerenciam o gasto público que o façam de modo honesto, eficiente e probo. A nova procuradora-geral escolheu uma fala do papa Francisco para criticar os corruptos. “A corrupção não é um ato, mas uma condição, um estado pessoal e social, no qual a pessoa se habitua a viver. O corrupto está tão fechado e satisfeito em alimentar a sua autossuficiência que não se deixa questionar por nada nem por ninguém. Construiu uma autoestima que se baseia em atitudes fraudulentas. Passa a vida buscando os atalhos do oportunismo, ao preço de sua própria dignidade e da dignidade dos outros”, ressaltou Dodge, citando o papa.

A procuradora-geral, em tom sereno, também defendeu uma maior harmonia entre os Poderes, já que, segundo ela, zelar pelo bem comum é tarefa do MP. “É uma tarefa necessária, que exige de nós coragem. O país passa por um momento de depuração. Os órgãos do sistema de administração de Justiça têm no respeito e harmonia entre as instituições a pedra angular que equilibra a relação necessária para se fazer Justiça em cada caso concreto”, afirmou. “O Ministério Público, como defensor constitucional do interesse público, posta-se ao lado dos cidadãos para cumprir o que lhe incumbe claramente a Constituição de modo a assegurar que todos são iguais e todos são livres, que o devido processo legal é um direito e que a harmonia entre os Poderes é um requisito para a estabilidade da Nação”, acrescentou Dodge.

A nova procuradora também destacou a amplitude da atuação do Ministério Público, que, além do combate aos desvios de recursos públicos, tem a função constitucional de preservar a dignidade do cidadão brasileiro e dar voz a quem não tem. “O Ministério Público deve promover Justiça, defender a democracia, zelar pelo bem comum e pelo meio ambiente, assegurar voz a quem não a tem e garantir que ninguém esteja acima da lei e ninguém esteja abaixo da lei (... ) A dignidade humana é essencial para assegurar um futuro de paz no país e entre as nações”, defendeu Dodge, reforçando a expectativa de que, sem deixar de lado o combate à corrupção, focará a atuação do MP também em defesa das minorias e dos direitos humanos.

 

“Confiança”

Presente à cerimônia, o ministro do STF Luís Roberto Barroso afirmou que tem confiança de que Raquel Dodge continuará a tradição dos últimos procuradores-gerais de proteção aos direitos fundamentais da população. “O combater a corrupção não deve ser um fim em si porque a integridade é uma premissa para que as outras áreas, como a saúde, a educação e a Justiça funcionem. O objetivo é que isso deixe de ser um problema para que a gente possa verdadeiramente cuidar do que tem que cuidar”, comentou o magistrado na saída do evento, do qual participaram também os ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello.

Em relação ao receio de alguns procuradores sobre a condução da Operação Lava-Jato a partir de agora, Barroso acredita que a nova-procuradora não sujará a biografia por causa de quem a indicou para o cargo. Dodge assume a função sob desconfiança por ter sido uma escolha pessoal do presidente Michel Temer, que quebrou uma tradição de 14 anos de escolher o eleito pela categoria. Na lista tríplice feita pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Raquel Dodge ficou em segundo lugar — Nicolao Dino, o candidato de Janot, teve 621 votos, enquanto Raquel, 587. “Quando as pessoas chegam nessas posições, vivem para a própria biografia, não vivem para prestar favores. Claro que tem o reconhecimento pela autoridade que o nomeou, mas o compromisso é com o país”, acrescentou Barroso, citando a passagem de Guerra e Paz, do escritor russo Leon Tolstói: “Não importa como você chegou aqui, o importante é o que você vai fazer daqui pra frente”.

Na opinião do professor de direito constitucional Edem Napoli Guimarães, é natural que haja forte mudança no perfil da instituição, já que Dodge e Janot são muito diferentes e isso é inerente da condição humana. Entretanto, Napoli ressalta a importância de que as ações levem em consideração as regras e princípios constitucionais e institucionais do cargo. “Ela está em uma função em nome e no interesse do público, logo, é preciso que respeite alguns valores e, nisso, não pode haver divergências. As diferentes características podem ser no ponto de vista pessoal, mas não em relação à instituição”, disse.

 

Acúmulo de atribuições

O procurador-geral da República é o chefe do Ministério Público da União (MPU). De acordo com a Lei Complementar 75, a estrutura do MPU abrange o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Ministério Público Militar (MPM) e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Cada unidade que integra o MPU tem seu procurador-geral.

No entanto, como chefe do Ministério Público da União, o procurador-geral representa as instituições. O vice-procurador-geral da República, que assume o cargo eventualmente, é nomeado pelo chefe do MPU e pode atuar nos casos em que o PGR é declarado suspeito.