O Estado de São Paulo, n. 45271, 28/09/2017. Metrópole, p. A16.

 

STF libera ensino religioso ligado a uma crença específica em escola pública

Rafael Moraes Moura / Breno Pires

28/09/2017

 

 

Sociedade. Com a decisão, não há impedimento para que um religioso – padre ou pastor, por exemplo – dê a disciplina. Saiu vencida a Procuradoria-Geral da República, que iniciou a discussão em 2010 após um acordo entre o governo brasileiro e o Vaticano

 

 

Por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal( STF) decidiu ontem que o ensino religioso em escolas públicas, que é facultativo, pode estar ligado a uma crença específica. E não há impedimento para que um religioso, um padre ou pastor, por exemplo, dê a disciplina. Dessa forma, saiu vencida a Procuradoria-Geral da República (PGR), que iniciou a discussão em 2010.

O caso girou em torno de um acordo entre Brasil e o Vaticano, firmado no Vaticano em 2008. O decreto em questão, do ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, previa que o “ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas” constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas do ensino fundamental (alunos entre 6 e 14 anos).

Na avaliação da PGR, a redação evidencia a adoção de um ensino confessional, ou seja, com vinculação acertas religiões, o que seria inconstitucional. A Procuradoria sustentava que a disciplina deve ser voltada para a história e a doutrina das várias religiões, ensinadas sob perspectiva laica.

“Não vejo como se opor à laicidade a opção do legislador e não vejo contrariedade aqui que pudesse me levar a considerar inconstitucionais as normas questionadas”, disse a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, que desempatou o julgamento. Além dela, votaram a favor do confessional os ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Coube a Moraes abrir a divergência. Em sentido contrário votaram o relator da ação, Luís Roberto Barroso, e Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, Luiz Fux e Rosa Weber.

Celso de Mello defende a fé como essencialmente privada no Estado laico. “Concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar as decisões do Estado, devendo fi- car circunscritas à esfera privada.” Para o decano da Corte, a religião é relevante e digno de tutela na Constituição, mas se dá “no lar, na intimidade, nas escolas particulares”.

Para Barroso, só o modelo não confessional é compatível com o princípio de Estado laico. Nessa modalidade, explicou, a disciplina consiste na exposição neutra e objetiva de doutrinas, práticas, aspectos históricos e dimensões sociais das diferentes religiões. Mas essa posição acabou derrotada.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tem defendido o acordo com a Santa Sé, dizendo que não representa privilégio a nenhuma religião, mas uma forma de possibi- litar a formação religiosa.

Ao site da CNBB, d. João Justino de Medeiros, presidente da Comissão para a Cultura e a Educação da entidade, destacou que a medida atende “a uma demanda do aluno que já fez uma opção de fé, por si mesmo ou por sua família”.

No processo de decisão, que durou sete anos, o STF ouviu dezenas de organizações religiosas, grande parte contrárias. A Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro, por exemplo, defendeu licenciatura específica para docentes e viu risco de discriminação. A Convenção Nacional das Assembleias de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus foram contrários ao ensino confessional.

 

Legislação. O ensino religioso está previsto no artigo 210 da Constituição e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1997, principal norma da área. Cabe às secretarias estaduais e municipais definir esse tipo de conteúdo e fixar normas para admitir professores, ouvidas as diversas denominações religiosas. A LDB veda o proselitismo e destaca a defesa da diversidade religiosa.

Atualmente está em construção a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), que definirá o que o aluno deve aprender em cada etapa. As duas primeiras versões do documento para o ensino fundamental faziam menção a ensino religioso, sem vinculação a crença específica.

Na terceira versão – concluída em abril pelo Ministério da Educação (MEC) e ainda em análise pelo Conselho Nacional de Educação – foi excluída a menção ao tema. À época, o MEC disse respeitar a lei, que prevê o tema como optativo, e destacou que cabe a Estados e municípios a regulamentação. Entidades religiosas criticaram a medida.

Com a decisão de STF de ontem, na prática, será possível oferecer ensino confessional, não confessional (história da religião por exemplo) e interconfessional, reunindo partes de várias crenças.

 

Perfil

No Censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 64,6% dos brasileiros se declararam católicos. Do total, 22,2% se disseram protestantes, e 8%, sem religião.

 

A FAVOR

Alexandre de Moraes

“O oferecimento de ensino confessional será permitido aos alunos que se expressem voluntariamente, para que possam exercer na plenitude o seu direito subjetivo ao ensino religioso.”

 

Edson Fachin

“O princípio da laicidade não se confunde com laicismo.”

 

Ricardo Lewandowski

“Laicidade não implica descaso estatal para com a religião, mas sim consideração para com a diferença, de maneira tal a prever a colaboração.”

 

Dias Toffoli

“O Estado brasileiro não é inimigo da fé.”

 

Gilmar Mendes

“Ainda que o Estado seja laico, a religião foi e continua sendo importante para a própria formação da sociedade.”

 

Cármen Lúcia

“A laicidade do Estado brasileiro não impediu o reconhecimento de que a liberdade religiosa impôs deveres ao Estado, um dos quais a oferta de ensino religioso com a facultatividade de opção por ele.”

 

CONTRA

Luís Roberto Barroso

“A ideia de laicidade também envolve o respeito à liberdade religiosa e o respeito ao direito de não ter qualquer religião.”

 

Rosa Weber

“Religião e fé dizem respeito ao domínio privado, e não público. Neutro há de ser o Estado.”

 

Luiz Fux

“A confessionalidade do ensino público ultraja de forma bifronte a liberdade individual religiosa e a igualdade ao impor uma preconcepção religiosa, o que implica inequivocamente no vedado proselitismo.”

 

Marco Aurélio Mello

“É tempo de atentar para o lugar da religião na sociedade brasileira, ( que se desenvolve no) seio privado, no lar, na intimidade, nas escolas particulares.”

 

Celso de Mello

“A laicidade do Estado envolve a pretensão republicana de delimitar espaços próprios e inconfundíveis para o poder político e a fé. O Estado não tem nem pode ter interesses confessionais.”

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Modelo ainda é pouco usado, dizem diretores

Priscila Mengue / Paula Felix / Julia Marques

28/09/2017

 

 

Uma em cada 5 escolas do País não oferece ensino religioso, mostra levantamento; proposta divide especialistas

 

 

Em apenas 3% das escolas públicas de ensino fundamental do País, há ensino religioso ligado a uma determinada crença. Isso é o que mostram as respostas de questionários aplicados pelo Ministério da Educação a diretores de colégios em 2015, na realização da Prova Brasil.

No total, 52.341 diretores responderam aos questionários. Em 20% dos colégios não havia nem a disciplina. Apesar do caráter facultativo dessa componente, 37% dos diretores informaram que em suas escolas as aulas de ensino religioso eram obrigatórias.

Outra questão apresentada nos questionários é como se ocupava o tempo de quem não queria participar. Segundo os diretores, 55% das vezes não havia outra atividade prevista para o resto da turma.

Não há levantamento espe- cífico sobre a distribuição desse tipo de aula no País, mas o modelo confessional avalizado ontem pelo Supremo Tribunal Federal é o que já se oferece, por exemplo, na rede estadual do Rio, como ressalta Salomão Ximenes, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC). Para ele, a decisão de ontem é “retrógrada” e contraria tendência recente da Corte de priorizar interesses laicos.

“Conflitos, que já estão latentes na escola, serão acirrados no momento em que as pessoas, e sobretudo as crianças pe- quenas, terão de expressar uma identidade religiosa”, prevê ele, que também é representante do Centro de Estudos Educação e Sociedade. “É claro que a partir disso haverá decorrências, como proselitismo e pregação nas escolas. Isso acaba sen- do estimulado também porque fica ainda mais confusa a separação entre a escola pública e o espaço das religiões”, diz.

Já Valéria Lopes, ex-coordenadora de Ensino Religioso na Subsecretaria de Planejamento Pedagógica da Secretaria da Educação do Estado do Rio, acredita que representantes de religiões podem dar aulas. “É importante que o professor tenha formação e vivência na área que leciona, pois ele precisa participar da experiência para conhecê-la profundamente. Se o ensino fica apenas na teoria, a tendência é o jovem se evadir, se dispersar, por não se interessar.” 

 

EM OUTROS PAÍSES

França

As aulas de religião não fazem parte do currículo escolar. A questão religiosa é considerada particular.

 

Portugal, Espanha e Itália

É facultativo para o aluno. “A família pode decidir qual religião quer que seja ensinada pra o filho”, diz Eulálio Figueira, professor da PUC-SP.

 

Estados Unidos

Não é oferecido nas escolas públicas. Não há orações nem símbolos religiosos nas unidades, como destaca Davi Charles Gomes, chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

 

Indonésia

As escolas têm ensino religioso para ensinar como a sociedade foi criada com o respeito mútuo entre as religiões consideradas oficiais, incluindo islamismo, hinduísmo, budismo e catolicismo.

 

Moçambique e Angola

Caso uma igreja queira montar uma escola, o Estado paga o salário dos professores. “O ensino religioso é facultativo, depende da instituição. Se tiver, os professores da própria igreja podem dar aula”, explica Gomes.