Correio braziliense, n. 19862, 09/10/2017. Política, p. 02.

 

Um reforma aquém dos anseios do povo

Natália Lambert

09/10/2017

 

 

PODER EM CRISE » Depois da instalação da polêmica sobre a censura presente em artigo da reforma eleitoral, o presidente Temer sanciona a lei sem o trecho. Quem for alvo de ataques de ódio e de notícias falsas nas redes sociais terá de recorrer à Justiça

 

 

Nos últimos sete meses, deputados se debruçaram sobre a reforma política sancionada na semana passada pelo presidente Michel Temer. Só o deputado Vicente Cândido (PT-SP) elaborou mais de 15 relatórios de projetos que tratavam de diversos temas para alcançar consenso entre os parlamentares. Em meio a muitas polêmicas e disputas por interesses próprios, o resultado ficou bem aquém do esperado, se resumiu a alterações eleitorais pontuais e bem distantes dos anseios da sociedade. Na opinião de especialistas, o desejo de mudança expressado pela população, desde as manifestações que movimentaram o país em 2013, passou longe do texto entregue pelo Congresso.

Diante do impasse a respeito de sistemas eleitorais e mudanças significativas, políticos focaram a nova lei na busca por recursos para a campanha do ano que vem, já que o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu, em 2015, o financiamento empresarial e as dificuldades ficaram explícitas nas eleições municipais de 2016. A solução foi a criação de um Fundo Especial de Financiamento de Campanha, previsto para alcançar cerca de R$ 1,7 bilhão, abastecido com dinheiro público. A ideia afastou ainda mais o eleitor.

De acordo com o sociólogo Bruno Borges, o momento de crise e de instabilidade é inadequado para reformas estruturantes por causa da descrença da sociedade em relação à política. “A população sente dificuldade em reconhecer a legitimidade do que é feito. Tudo que vem da política é visto como algo ruim. Ainda mais quando as soluções são costuradas dentro dos gabinetes, longe das pessoas. Isso estimula esse sentimento que afasta a sociedade dos partidos, do processo eleitoral e da política em si. Estamos observando a pior das patologias da democracia”, comenta Borges.

 

“Transparente”

O professor ressalta, por exemplo, que o fundo de financiamento público de campanha é uma medida boa, mas o cidadão o enxerga como algo que está levando o dinheiro da saúde ou da educação direto para o bolso dos candidatos. “Temos um país continental e, para a democracia ser real, as campanhas precisam chegar a todos os cantos do Brasil. Então, diante de uma campanha mais barata e com a proibição do financiamento empresarial, o fundo público é, sim, uma solução. Mas o descrédito é tão grande que a gente desconfia da motivação de tudo. Uma reforma política tem de ser clara e transparente, com participação social”, acrescenta.

Na opinião do senador Reguffe (sem partido-DF) — que votou contra o projeto debatido por apenas 20 minutos pelos senadores —, o que o Congresso fez não foi uma mudança no sistema político, mas alterações para beneficiar grupos e interesses específicos. “Essa reforma mostra o quanto o Congresso está divorciado da sociedade brasileira. Enquanto a população sofre sem saúde e educação, cria-se um fundo bilionário com recursos públicos”, critica.

O diretor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol-UnB), Paulo Calmon, comenta que a reforma buscou somente a sobrevivência política de quem está hoje no Congresso. De acordo com o professor, a falta de consenso se deu, justamente, porque a maioria estava de olho nas urnas e barrou decisões que pudessem afetar a reeleição. “Isso é natural sempre que uma reforma é feita às vésperas de uma eleição e é deliberada totalmente no âmbito dos congressistas já eleitos. O contexto dessa reforma foi inadequado. Há um deficit de representação, um problema fundamental na conexão eleitoral, entre eleitos e eleitores. Isso precisa melhorar”, afirma.

Calmon destaca que não existe modelo eleitoral ideal, todos têm vantagens e desvantagens, mas existe um conjunto de regras que permite estabelecer um sistema de representação que vai melhorando a democracia ao longo do tempo e isso precisa ser exposto e debatido com a sociedade. “A nossa grande crise é a da democracia. Ela é o pano de fundo por trás de todas as outras crises. Agora, optou-se por não mudar o sistema eleitoral, mas o país pode aperfeiçoar isso e o debate tem de ser precedido de uma ampla participação social. A solução é mais democracia e não menos, como defendem alguns por aí”, defende o professor.

 

Visão positiva

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Gilmar Mendes, acredita que, dentro de um cenário no qual o Congresso se encontra com uma agenda pesada entre denúncias e escândalos, o resultado da reforma foi positivo. “Claro que poderia ter sido melhor. O ideal seria que tivesse mudado o sistema eleitoral, mas era necessário um clima de maior tranquilidade e racionalidade”, pondera.

Apesar de ter passado o prazo para valer em 2018, deputados e senadores não desistiram de alterar o sistema eleitoral e as discussões sobre distritão, distrital misto, e outros modelos permanecem nas duas Casas legislativas. Depois de admitir que a reforma aprovada foi a “possível”, o relator Vicente Cândido insistirá no debate na Câmara. E, no Senado, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado aprovou, na última quarta-feira, uma proposta que estabelece o voto distrital misto no país. Será debatida em plenário a partir desta semana.

 

R$ 1,7 bilhão

Valor estimado que terá o Fundo Especial de Financiamento de Campanha, sancionado, na última sexta-feira, pelo presidente Michel Temer

 

Frase

“A população sente dificuldade em reconhecer a legitimidade do que é feito. Tudo que vem da política é visto como algo ruim”

Bruno Borges, sociólogo