Correio braziliense, n. 19863, 10/10/2017. Opinião, p. 11.

 

O suicídio da democracia

Cristovam Buarque

10/10/2017

 

 

Na semana passada, fui surpreendido pela divulgação de um áudio com uma voz supostamente minha que defendia ideias com as quais não compactuo. Há anos, alerto para o risco da volta do regime militar e tenho sido ferrenho adversário dessa alternativa, mas o áudio passa a ideia de que não apenas alerto como também sugiro essa insanidade. Fui vítima de uma violência e incômodo a que se somaram surpresa e preocupação com o fato de receber cumprimentos de apoio por parte daqueles que imaginavam ser minha voz e meu discurso. Decepcionei pessoas, em diversos lugares, quando neguei a autoria da mensagem.

A crise que atravessamos deve ser resolvida pelas urnas, não pelas armas; pelos políticos, não pelos militares. Quem tem conhecimento histórico sabe que uma ditadura não permite corrigir seus erros. Os políticos atuais, com todos os seus defeitos, têm apenas 52 semanas para voltarem para casa, se o povo assim votar. Um regime militar não tem prazo de permanência, o último demorou 21 anos e foi muito difícil de ser derrubado.

Os atuais políticos estão sob o fogo da imprensa, da Justiça, da polícia e do Ministério Público. Diversos deles presos, muitos transformados em réus à espera da sentença. Em um regime autoritário, a Justiça será controlada, a imprensa censurada, a polícia desviada de função para servir à repressão política. E nada indica que as fardas não têm bolsos para alguns militares que desejarem se locupletar ou que não fecharão os olhos para os políticos que vão servi-los, corruptamente, muitos dos quais escolhidos dentre os atuais.

Uma intervenção militar não é a saída para a crise brasileira e para a desmoralização da classe política, mas é preciso reconhecer a expectativa dos brasileiros frustrados com a corrupção, a incompetência e a falta de patriotismo de nós políticos. Raríssimos militares desejariam intervir na política. Eles são formados com o sentimento de patriotismo, de interesse nacional, com espírito público e são hoje, em sua maioria, comprometidos com a democracia. Se há um desejo de intervenção, parte de políticos ex-militares e da população descontente.

A culpa desse sentimento, comprovado pela reação de pessoas diante do áudio que eu repudiei, é do nosso fracasso na condução do Brasil, das imagens de políticos com malas de dinheiro, das gravações e delações expondo o submundo da política. Isso não seria um risco se o militar não fosse um cidadão que vê a tragédia de seu país, a falta de coesão no presente e a falta de rumo para o futuro.

Aliada a isso está a indignação crescente de cada militar, obrigado a prestar continência e reverência a um poder civil cada vez menos respeitado.  É tão óbvio esse risco que parece surpreendente continuarmos cometendo erros a cada dia nas decisões que tomamos no Congresso: um fundo para financiar eleições com dinheiro público, enquanto os hospitais, as universidades e os quartéis não têm o necessário para funcionar; uma reforma política feita para reduzir a chance de renovação; a instabilidade jurídica, a violência; além, obviamente, da tolerância com a corrupção estão levando o povo contra o poder civil.

(...)

 

CRISTOVAM BUARQUE

Senador pelo PPS-DF e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)