O globo, n.30850 , 23/01/2018. SOCIEDADE, p. 21

Violência invisível

LUIS GUILHERME JULIÃO

LUIZA SOUTO

 

 

Falta de dados oficiais dificulta solução de crimes e políticas públicas contra a homofobia

 

Há quase dois anos o aposentado Sidnei Marques Prandina, de 49 anos, foi encontrado morto em uma tarde de sábado, no rio Pinheiros, que corta São Paulo. Quatro meses depois, também num sábado, o corpo de Diego Vieira Machado, de 29 anos, foi achado perto do alojamento estudantil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na capital fluminense. Para além da coincidência do dia da semana, os dois casos têm muito mais em comum: ambas as vítimas eram gays, foram encontradas com marcas de espancamento em uma grande cidade brasileira e, mais de um ano depois, os crimes continuam sem solução. Não é possível precisar quantos outros casos similares ocorrem no Brasil: a falta de dados oficiais sobre crimes contra lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBTs) impede o país de ter um diagnóstico do problema para buscar soluções por meio de políticas públicas.

O único levantamento nacional é feito pela ONG Grupo Gay da Bahia (GGB), que se baseia em informações publicadas em jornais e sites de notícias. Isso faz com que haja subnotificação dos casos. Além disso, não há garantia de que todas as mortes contabilizadas foram motivadas por homofobia. O dado, entretanto, é usado como referência para ONGs internacionais que mapeiam os direitos LGBT no mundo, como a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Pessoas Trans e Intersexuais (Ilga, na sigla em inglês) e citado até em um relatório do governo federal de 2013.

O CGB registrou 958 mortes ligadas à homofobia no Brasil entre 2014 e 2016. Em 2017, foram 445 mortes contabilizadas, 30% a mais do que no ano anterior. Dessa forma, o Brasil aparece como um campeão de mortes motivadas por homofobia na América Latina. A cada 19 horas um LGBT é assassinado ou comete suicídio.

O número oficial mais próximo da realidade é o de denúncias recebidas pelo disque 100, serviço telefônico da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal, que recebe denúncias relacionadas a violação de populações vulneráveis. Em 2016, o órgão recebeu 1.876 denúncias relacionadas à violação de direitos LGBT, número 61% superior ao ano de 2011, quando o serviço começou a funcionar.

 

ÚLTIMO RELATÓRIO OFICIAL É DE 2013

Em um relatório de 2013, o último publicado sobre o tema, a Secretaria de Direitos Humanos cita o levantamento feito pelo GGB. De acordo com o órgão, um novo levantamento está sendo produzido para os anos de 2014 a 2016, mas deve ser publicado apenas em fevereiro de 2018.

Uma das poucas atividades que tiravam Sidnei de casa era um centro espírita que ele tinha voltado a frequentar havia pouco tempo, conta a irmã, Ana Lúcia Prandina. Na tarde de uma quinta-feira de março de 2016, ele saiu de casa para ir ao centro e não deu mais notícias. Foi encontrado morto dois dias depois. O laudo médico apontou espancamento como a causa da morte, que ocorreu antes de seu corpo ser jogado no rio.

— Tudo leva a crer que foi por causa de homofobia. Estou sempre em contato com o delegado que está investigando, mas ele não dá muitos detalhes. Coloquei na minha cabeça que ele não quer falar para não estragar a investigação. Tenho fé de que vai descobrir o responsável para a gente ter um pouco de paz — desabafa Ana Lúcia.

O delegado que cuida do caso não quis dar entrevista. A Polícia Civil informou em nota que a morte de Sidnei segue em investigação e que nenhuma possibilidade é descartada. A morte de Diego, no Rio, tem ainda menos informações. A Polícia Civil fluminense informou apenas que a investigação segue sob sigilo.

No âmbito estadual também há escassez de dados e, quando eles existem, são incompletos ou contêm erros. O GLOBO procurou dez dentre as 27 unidades federativas do país. Nenhuma tinha dados sistematizados sobre crimes de homofobia. A Secretaria de Direitos Humanos do Rio de Janeiro, que produz um relatório, enviou ao GLOBO uma planilha cuja soma dos dados de 2015 difere do total indicado na mesma tabela. O secretário de Direitos Humanos, Átila Nunes, diz ter recebido as estatísticas assim da gestão anterior e explica que as informações são levantadas com base nas ligações recebidas pelo disque-homofobia do estado e nos casos atendidos nos centros de Cidadania LGBT. Segundo ele, o órgão está trabalhando em conjunto com a Secretaria de Segurança para que os registros de ocorrência tenham a motivação do crime e a pasta consiga fazer um novo levantamento. A Polícia Civil do estado já inclui esse tipo de informação nos registros pelo menos desde janeiro deste ano.