Título: A Coreia surpreende
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Fonte: Correio Braziliense, 05/03/2012, Opinião, p. 10

Surpresa e cautela marcam as reflexões em todo o mundo a respeito do acordo firmado entre a hermética Coreia do Norte e os Estados Unidos na semana passada.

Os norte-coreanos aceitaram uma moratória de lançamento dos seus mísseis de longa distância, testes nucleares e atividades de enriquecimento de urânio no complexo nuclear de Yongbyon. Além disso, vão permitir o retorno das inspeções técnicas da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) para supervisionar a moratória sobre o enriquecimento de urânio. Em troca, os norte-americanos vão retomar a ajuda alimentar, inicialmente projetada em 240 mil toneladas, à Coreia do Norte.

O que surpreende é ser muito recente o aumento das provocações à vizinha Coreia do Sul desde a ascensão ao poder de Kim Jung-Un depois da morte do pai, Kim Jong-Il, em dezembro. A situação ainda é das mais delicadas entre os dois países, não havendo o menor sinal de que o novo líder do norte estaria disposto a reabrir negociações com os sul-coreanos ou com os demais membros do chamado Grupo do Seis Países — Estados Unidos, Japão, China e Rússia, além das duas Coreias.

Pelo contrário, Kim Jung-Un vem de ameaçar com retaliações a exercícios militares desenvolvidos há poucas semanas por forças sul-coreanas em conjunto com tropas norte-americanas na zona militarizada entre as duas Coreias. O mandatário do norte também reagiu com estridência à realização da Cúpula sobre Segurança Nuclear programada pela AIEA para Seul no final deste mês, classificando o evento de inaceitável provocação a Pyongyang.

Se há razões de sobra para a surpresa, não faltam motivos para que o mundo e não apenas a Coreia do Sul receba com cautela o inesperado gesto de boa vontade do jovem ditador Kim Jung-Un. Ele pode estar sofrendo pressões internas para aliviar as carências provocadas pelo fracasso do regime que comanda o país desde o fim da guerra com a Coreia do Sul, em 1953. De fato, as condições de vida do povo norte-coreano tinham se deteriorado nos últimos anos e a situação pode estar muito pior do que o severo bloqueio às informações têm permitido ao mundo saber sobre o país.

Mas pode apenas tentar ganhar tempo antes de voltar a chantagear com seus arsenais nucleares a vizinha do sul e o Ocidente. Nos próximos dias começa uma série de encontros diplomáticos para o detalhamento do acordo. É quando se saberá até que ponto vai a disposição de Kim Jung-Un, especialmente em relação à Coreia do Sul. Afinal, até agora, Seul não foi chamada a participar dos entendimentos e confia muito pouco nos propósitos da didatura implantada no norte.

De saída, analistas sul-coreanos alertam para o fato de que o enriquecimento de urânio é apenas a menor e menos avançada parte do programa nuclear norte-coreano. De fato, as bases militares mais importantes da Coreia do Norte usam como combustível o plutônio enriquecido, que não entrou, até agora, no acordo. Tampouco se sabe ao certo se há outras instalações mantidas em sigilo. Acostumados a viver sob ameaças, os sul-coreanos alertam para o perigo de acreditar nessa súbida conversão ao bom senso por parte do regime da Coreia do Norte. Talvez eles tenham razão.