Título: Com gosto de crise
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 05/03/2012, Mundo, p. 12
Vladimir Putin é reeleito presidente, em meio a denúncias de fraudes. Analistas alertam para divisões e temem nova onda de protestos
As denúncias de fraude nas eleições da Rússia deverão lançar o país numa grave crise política e significar pesados dividendos para Vladimir Putin. Para especialistas russos consultados pelo Correio, a vitória do premiê — que conquistou ontem o direito de exercer o terceiro mandato para presidente — aprofundará as divisões internas na política e será usada como combustível para manifestações da oposição. Às lágrimas, Putin garantiu que a vitória foi construída por meio de uma luta "aberta e limpa". "Ganhamos! Glória à Rússia!", declarou o premiê, diante de uma multidão de simpatizantes, na Praça Manezhnaya, ao lado das muralhas vermelhas do Kremlin, em Moscou.
Com 50% das seções eleitorais apuradas, Putin obtinha 64,39% dos votos contra 17,13% para o comunista Guenadi Ziuganov. O magnata Mikhail Projorov contava com apenas 6,97%, quase empatado com o populista Vladimir Jirinovski, com 6,71%. O índice de abstenção chegava a 36%.
Com o triunfo de ontem, Putin poderá tentar a reeleição em 2018 e permanecer no poder até 2024. No entanto, o "czar da era moderna" terá um tarefa complicada. "Certamente, ele enfrentará tensões, divisões, protestos e contestação", admitiu Dmitri Trenin, diretor do Carnegie Moscow Center. "A situação político-econômica, em âmbitos interno e externo, não será fácil. Desde 4 de dezembro passado, o premiê vem enfrentando uma série de protestos, deflagrados justamente por fraudes nas eleições parlamentares. O choro de ontem representou o desabafo de um líder cada vez mais questionado. "Nossos eleitores sabem diferenciar entre o desejo de renovação e as provocações políticas, cujo objetivo é destruir nosso Estado e usurpar o poder", discursou Putin. Para ele, a vitória de ontem foi um "teste de maturidade política e de independência". Depois de abrir mão da reeleição em prol do padrinho político, o atual presidente, Dmitri Medvedev, adotou o tom da unidade. "O país e cada um de nós precisávamos desta vitória", sublinhou. "Não deixemos que arrebatem nossa vitória!", exclamou.
Enquanto o ex-espião da KGB — o antigo serviço secreto russo — comemorava seu retorno ao Kremlin, a oposição não media críticas à eleição. "Foi um roubo, absolutamente desonesta e indigna", declarou Ziuganov. "Não a reconhecemos", emendou. Citado pela agência France-Presse, Vladimir Rijkov, um dos organizadores das manifestações de dezembro, negou-se a considerar o pleito legítimo. "Amanhã pela manhã teremos contabilizado 30 mil casos de fraude", denunciou à tevê estatal. Um vídeo que circulou ontem pela internet transformou-se no principal símbolo de irregularidade das eleições. Outro líder da oposição, Alexei Navalny também colocou em xeque a votação e as aspirações do novo presidente. "Vladimir Putin se nomeará czar. Ele tentará permanecer na presidência pelo resto de sua vida. Precisamos lutar e impedi-lo de tomar o poder de forma errada. Nossa meta é manter a pressão sobre Putin", prometeu. Os adversários anunciaram para hoje um grande protesto.
Turbulência Diretora do Programa de Instituições Políticas e de Política Doméstica Russa do instituto Carnegie Endowment for International Peace (em Moscou), Lilia Shevtsova adverte: "A Rússia está entrando em um período turbulento". Segundo ela, Putin perderá sua legitimidade e sua credibilidade. "Quando não existe chance para uma transformação interna e do poder, só uma forma de mudança pode ser feita e ela deve partir de baixo", alerta. Lilia acredita que o presidente eleito enfrentará novas ondas de protestos. "Sua base de apoio começou a ruir. O problema mais dramático é que ele não pode preservar o antigo status quo e nem reformar o sistema, o que representaria a derrocada de seu regime", observou, por e-mail.
A especialista admite que Putin perdeu o apoio dos moscovitas e já não consegue satisfazer seus aliados tradicionais. "Sua rede de segurança é o preço do petróleo. Mas por quanto tempo?", questiona Lilia. "Para manter a sociedade calma, ele precisará cumprir as promessas de injetar US$ 160 bilhões na economia russa. O orçamento não poderá ser "ordenhado" dessa maneira por tranto tempo", comentou.
Flagrante escandaloso O vídeo, divulgado no site YouTube, tem 6 minutos e 53 segundos e é escandaloso. O registro, feito por uma webcam no colégio eleitoral nº 1.402 do Daguestão, no Cáucaso, mostra um homem votando 10 vezes. Ao lado, uma mulher insere na urna a cédula eleitoral e é auxiliada a repetir o voto. A cena se repete várias vezes e envolve sempre as duas pessoas. Os demais eleitores transitam, de modo tranquilo, pela seção. A Comissão Eleitoral Central prometeu cancelar os resultados do colégio. "A câmera mostrou a fraude. Eu garanto que os resultados serão invalidados", declarou Léonid Ivilev, presidente da comissão, à agência Ria Novosti.