Correio braziliense, n. 19876, 23/10/2017. Brasil, p. 04.

 

Ameaças ao Estatuto do Desarmamento

Ingrid Soares

23/10/2017

 

 

O caso do estudante de Goiânia que matou dois colegas a tiros na sexta-feira abriu debate sobre o acesso às armas no Brasil. Em meio a discussões e meses antes de completar 14 anos, o Estatuto do Desarmamento, que proíbe o porte por civis (salvo exceções), poderá sofrer sérias mudanças. Parlamentares aprovaram dois projetos que alteram a lei e envolvem a liberação de revólveres e pistolas para agentes de trânsito e trabalhadores rurais.

O objetivo, de acordo com os autores dos projetos, seria o de proporcionar a defesa pessoal, familiar ou de terceiros. A tramitação sobre o porte de armas dos agentes de trânsito foi rápida e levou menos de dois anos. Sem passar por audiência pública ou debate, foi aprovado no dia 27 do mês passado.

A outra proposta permite a concessão de licença para o porte de armas para proprietários e trabalhadores rurais maiores de 21 anos. O Estatuto do Desarmamento, de dezembro de 2003, prevê a idade mínima de 25 anos para a compra de armas. De acordo com o projeto, a licença para o porte rural de arma de fogo terá validade de 10 anos e “será restrita aos limites da propriedade rural, condicionada à demonstração simplificada, à autoridade responsável pela emissão, de habilidade no manejo”. O texto foi aprovado na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, no último dia 4.

O ex-secretário de segurança do Distrito Federal Arthur Trindade, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor de sociologia da Universidade de Brasília (UnB), afirma que a questão sobre o desarmamento é, como a liberação do uso de drogas e a maioridade penal, um divisor de águas na questão central da segurança pública. Para ele, o descontrole de armas no comércio tem correlação com o aumento de suicídios, homicídios e latrocínio. Também aumenta o número de crimes no trânsito, brigas de vizinhos e nas escolas.

“Esses crimes acontecem por honra, por disputas amorosas, conflito de identidade, bullying. Tem gente que acha que com mais armas terá menos violência. Mas não há evidência que sustente isso. É um posicionamento de Idade Média. A maior parte das pesquisas mostra uma posição contrária. Mais arma significa mais violência. É pouco provável que vá melhorar”, aponta.

Trindade conta que um dos maiores medos da população de Brasília é o roubo a pedestres, pois, além da perda material, pode ocorrer também uma tragédia. “A justificativa para possuir armas é a de autoproteção. Porém, quem rouba com faca vai roubar com arma. A durabilidade de uma arma vai de 100 a 200 anos. Isso significa injetar um instrumento letal na sociedade. A questão é saber quanto tempo vai levar para chegar ao mercado ilegal. A capacidade de controlar armas no Brasil é muito ruim”, ressalta.

Sobre o caso de Goiânia, Trindade classifica como uma tragédia. “Não dá para julgar essa criança como um facínora. É uma situação difícil, porque os pais eram PMs e não tinham como não ter armas em casa. De um modo geral, trancar e esconder impedem crianças até uma certa idade de ter acesso. Mas, quando crescem, não dá para ter controle absoluto de que não vão mexer. É preciso tentar entender fenômenos como o bullying e o professor também tem de estar atento a essas ocorrências. Uma campanha para esclarecer sobre o uso de armas pode ser positiva nesse sentido”, opina.