Correio braziliense, n. 19879, 26/10/2017. Opinião, p. 15.

 

Chega de desinformação

Wálter Fanganiello Maierovitch

26/10/2017

 

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) deverá examinar pedido de habeas corpus preventivo em favor do paciente Cesare Battisti, condenado definitivamente na Itália, em face do quatro homicídios consumados entre junho de 1968 e abril de 1979. À época, Battisti integrava uma organização terrorista composta por cerca de 30 membros, nascida no interior de presídio onde o mencionado, sem qualquer ideologia, salvo a do lucro fácil em prejuízo patrimonial alheio, cumpria penas por várias dezenas de furtos. O pedido de extradição foi deferido e não efetivado, cumprido. Depois de deferir a extradição, entendeu o STF pela existência de uma questão política entre Estados nacionais e, por essa razão, deveria sua decisão ser referendada pelo presidente Lula.

Por seu turno e no último dia do mandato, Lula, com estranha motivação, suspendeu a execução da sentença de extradição. No particular, Lula desconsiderou a evolução civilizatória. Para a sedimentada jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos, sediada na francesa Estrasburgo, não se pode jamais considerar crime político o resultante em derramamento de sangue ou morte. Nem mesmo uma cabeça desmobiliada seria capaz de sustentar ter sido o assassinato de Martin Luther King um crime político. Em síntese, Battisti não perpetrou crime político e nem é perseguido político.

A extinta organização terrorista de Battisti, Proletários Armados para o Comunismo, se movia entre a Lombardia e o Veneto e a meta era destruir, pela luta armada e não pelo voto, o Estado democrático italiano. Tal organização entendia estar legitimada a matar ou aleijar (gambizzazione: tiros nas pernas para a vítima girar pelas ruas a lembrar o poder eversivo do PAC) comerciantes, magistrados, policiais, jornalistas, etc. tidos como “agentes do capitalismo” e representantes do poder burguês. Em volantes distribuídos pelas ruas, chamavam as vítimas de “porcos”

Não fosse a campanha de desinformação promovida pelos apoiadores de sempre de Battisti, seria dispensável dizer que a Itália, ao tempo do PAC, também das Brigadas Vermelhas e da Prima Línea, não era fascista como imaginavam o então ministro Tarso Genro e o advogado de Battisti, atual ministro José Roberto Barroso. O chefe de Estado era o socialista Sandro Pertini, o eurocomunismo estava em franca ascensão (Partido Comunista Italiano), o partido da Democracia Cristã (hegemônico pós-Segunda Guerra), rachado, e houve um pacto costurado por Enrico Berlinguer (PCI) e Aldo Moro (DC) para evitar influência estrangeira na vida política democrática do país. Moro, julgado e assassinado pelas Brigadas Vermelhas, trazia o centro da DC para formar uma resistência com o eurocomunista Berlinguer, respeitadíssimo na Itália, como revelam as imagens de milhares de pessoas por ocasião do seu sepultamento.

Massimo D’Alema, um dos expoentes do novo Movimento Progressista Democrático (MDP), de centro-esquerda e conhecido como Articolo Uno, lembrou do fuzilamento, pela terrorista Prima Línea (absorveu o PAC), de Guido Rossa. Rossa era líder metalúrgico italiano comparado ao Lula de São Bernardo. Massimo D´Alema, já primeiro-ministro, ex-ministro das relações exteriores  e antigo secretário-geral do Partido Comunistra Italiano (o PCI não aderiu à luta armada), lembrou, ao reprovar Battisti e o PAC, da afronta ao Estado democrático de direito e à República, tais ações terroristas, incluída a de vitimar Guido Rossa.

A propósito, mais de 60 juízes, entre togados e jurados populares, analisaram e julgaram os processos dos quatro homicídios de Battisti: três coautorias e uma participação (caso do joalheiro da periferia milanesa, Pierluigi Torregiani: para causar maior impacto na mídia, decidiu-se por dois homicídios simultâneos, nas regiões da Lombardia e Veneto (morte do açougueiro apolítico Lino Sabbatin).

Ainda mais, a Corte Europeia de Direitos Humanos, ao apreciar reclamo de Battisti para anulações processuais por ter sido condenado à revelia, decidiu ter sido ele sempre bem defendido por advogados constituídos, que compareciam às audiências preparados, com total conhecimento dos fatos processuais. Com efeito, claro está que a suprema decisão de deferimento da extradição pelo nosso STF está aperfeiçoada e não mais sujeita à revisão fundada na cláusula “rebus sic stantibus”, ou seja, na doutrina da imprevisão.

No momento, a questão Battisti resume-se à possibilidade de reconsideração de um ato administrativo do ex-presidente Lula, que está sujeito à discricionariedade do presidente Temer, novo chefe de Estado e de governo. No mais, não se pode transformar o habeas corpus em remédio apto a promover a revisão de decisão de extradição que já passou em julgado.

Duas últimas colocações. O ministro-relator, Cesar Peluso, escolhido e nomeado pelo presidente Lula, examinou com profundidade as provas e, com a sua reconhecida independência e preparo a colocá-lo como uma dos maiores juízes da história do STF, desmontou as teses defensivas e pôs a claro a tática da desinformação tendente a transformar o killer sanguinário Battisti em vítima. Não houve delação premiada nos processos de Battisti. Não só fundadores e membros do PAC apontaram para Battisti, como Arrigo Cavallina, Luigi Bergamin, Sante Fantone e Giuseppe Memeo. A incriminar Battisti existem confissões de Valério Cavalloni e Massimo Tirelli. E o relato da ex-namorada de Battisti, Maria Cecíla Berbetta, a contar como o namorado, em férias nas praias da Sardenha, relatava, com impressionante insensibilidade, as sensações de matar uma pessoa.

Battisti foi preso, 26 de junho de 1979, no apartamento de Silvana Marelli, com cinco pistolas automáticas, um fuzil e uma granada. Para rematar, não constou do pedido de extradição, e a Itália certamente talvez guarde na manga para outro pedido caso necessário, a tentativa de homicídio do médico Diego Fava. Neste caso, Battisti e Roberto Silvi tentaram matar o médico. (...)

 

WÁLTER FANGANIELLO MAIEROVITCH

Fundador e presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone, desembargador aposentado, professor de direito e Cavaliere della Repubblica da Itália