O Estado de São Paulo, n. 45245, 02/09/2017. Internacional, p. A10.

 

Sem militares, gangue controla favela no Haiti

Luciana Garbin

02/09/2017

 

 

Primeiras horas. Após saída de tropas da Minustah, acesso à principal favela de Porto Príncipe é dificultado por homens armados e subordinados ao ‘chefão’ local; dois policiais brasileiros continuarão no país para auxiliar a força local a se qualificar e

 

 

No primeiro dia com a polícia local no comando da segurança do Haiti, reportagem do Estado foi intimidada por homens armados ao voltar sem a companhia dos militares brasileiros a favela pacificada.

Após 13 anos da missão de paz chefiada militarmente pelo Brasil, o Haiti teve ontem seu primeiro dia sob comando da polícia local, com apoio de policiais da ONU. Embora o balanço oficial tenha sido de tranquilidade, a reportagem do ‘Estado’ foi intimidada por homens armados ao voltar sem a companhia dos militares a uma área de Cité Soleil, favela pacificada em 2007 após intensos confrontos.

A equipe foi abordada por um homem que se apresentou como “chefe” da área de Bel Alkou. Ele estava acompanhado por outros oito homens, pelo menos dois armados. Perto de um muro com a figura de Che Guevara descascada, um rapaz de chinelo, jeans e camisa se aproximou para perguntar o que o grupo fazia ali. Depois, avisou que ninguém pode entrar na área sem autorização do líder e que o avisaria para saber o que fazer. Minutos depois, um grupo se aproximou e um dos integrantes, que se apresentou como “o chefe”, mandou o fotógrafo do Estado tirar a lente da câmera e a jornalista do Diário de Pernambuco tapar a máquina.

Um tradutor que acompanhava a reportagem explicou, em crioulo, que a cobertura seria sobre bolachas feitas de barro e os brasileiros já estavam deixando o local. O chefe então mandou o grupo permanecer onde estava e a repórter do Estado, que estava mais distante, se aproximar. Ele disse ao tradutor que ninguém pode circular ali sem ordem dele e, se o grupo quisesse, poderia circular na favela, desde que com supervisão.

Os jornalistas disseram que preferiam trabalhar em outra área. O chefe então liberou a saída da reportagem e indicou a área em que havia bolachas de barro. Ao passar por ela, cerca de um quilômetro adiante, o tradutor disse que não seria possível ficar. Não havia segurança.

O temor em relação ao crescimento da violência após a saída das tropas foi relatado por haitianos ao longo desta semana, em particular em Cité Soleil, pacificada em 2007 pelas tropas da missão de paz depois de intensos confrontos. Ontem, a Polícia Nacional Haitiana (PNH) e a polícia das Nações Unidas assumiram o controle da segurança no país. Sentado numa cadeira desmontável na calçada, com um fuzil no colo e um celular na mão, um policial haitiano que pediu para ser identificado apenas como Pierre contou que a manhã havia sido tranquila em Vive Michele, um bairro de alto padrão de Porto Príncipe. Ele disse também que recebeu um “treinamento completo” para atuar, que está na polícia há três anos e que, se o país tiver problemas de criminalidade, “dá pra controlar”.

Brasil que fica. Depois que a Minustah for oficialmente encerrada, em 15 de outubro, apenas dois policiais brasileiros que trabalham nas Nações Unidas devem permanecer. Um deles é o mineiro Paulo Filipe Moura, de 30 anos. Há 9 meses em Porto Príncipe, ele diz que a imagem que ficou do Haiti no Brasil é a do militar com fuzil e capacete, mas dezenas de policiais brasileiros o antecederam.

Paulo chegou ao Haiti após passar dez anos na Polícia Militar de Minas e se submeter a testes de idioma, informática, tiro, armamento e direção, além de entrevistas e treinamentos. Seu mandato é de um ano, prorrogável por mais um. O trabalho da polícia das Nações Unidas é auxiliar na melhoria da polícia haitiana, ainda carente de técnica e doutrina, e transferir conhecimento aos policiais. O outro brasileiro é Anderson Silva Santana, do Rio de Janeiro.

A partir do mês que vem, o número de policiais estrangeiros no país cairá, de 980 para 295. E os contingentes de FPUs serão reduzidos de 11 para 7. “Hoje o país está tranquilo. O problema é se surgir algum fator que abale essa estabilidade, como um desastre natural ou um processo eleitoral conturbado. Acho que vai aumentar o índice de criminalidade, mas num nível ainda tranquilo se comparado a outros países. Como policial, aqui no Haiti me sinto muito mais seguro que no Brasil.”